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Música e Repetição
EDUC/Fapesp 1999


Silvio Ferraz


O objeto de estudo desta tese é a questão da repetição na música, o que poderia ser confundido com um estudo da repetição musical. Se esta última nos levaria a, por exemplo, um estudo tipológico das formas de repetição dentro de um enunciado musical: repetições à distância ou diretas, com mais ou menos variações, e neste último caso as repetições complexas do tipo retrogração, inversão, jogos de elisão e adição - se bem que esta tipologia permeie qualquer leitura que se faça da repetição na música -, não é desta repetição que tratamos, embora resvalemos nela. Compreenderemos por repetição um fenômeno um pouco mais amplo que envolve desde aquela repetição contida na reiteração de sons ou de eventos musicais até a repetição presente no ato de escuta e no ato de composição.

Mesmo antes de adentrarmos esta breve introdução, é importante ressaltarmos que, o que norteou todo este estudo foram questões surgidas no âmbito da própria prática composicional e da teoria que ela envolve.

O ponto de partida é o fato de que podemos pensar que todo ato de composição é um ato de repetição do diferente, uma repetição que se faz diferença e não reiteração.

Para o estudo da repetição tomamos por base o pensamento de Gilles Deleuze, cuja obra Diferença e Repetição apresentou um caminho para fugirmos à atraente facilidade das abordagens tipológicas de modos de repetição. Deste modo à repetição pudemos associar três pontos relevantes não só da composição musical, dos enunciados musicais, ou da análise musical, mas também, e sobretudo da escuta musical. Abarcando estes diferentes domínios é que a noção de sínteses do tempo, a qual Gilles Deleuze relaciona com repetições de natureza diferentes, serviram na tese para enfocar questões recorrentes da composição musical como a da unidade formal ou musical, ou mesmo estrutural, a do tempo, e aquela referente ao objeto sonoro seja o som tal qual se dá na percepção, seja a idéia de matéria sonora e material composicional.

Estas três questões são apresentadas na tese delineando distintamente cada capítulo: o primeiro e o segundo tratam da repetição na sua relação com a idéia de unidade; o terceiro e o quarto do objeto-sonoro; e as duas análises apresentadas na segunda parte da tese abordam a questão das sínteses do tempo apresentadas previa e teoricamente no capítulo 3. A esses 5 capítulos que compõem as duas partes da tese, segue uma conclusão intitulada "heterogênese da escuta" onde busquei concluir o percurso da tese, apresentando uma nova idéia dentro da própria tese e fazendo mais presente a potência da escuta como universo de compossibilidades e não mais como um fator que delimite possibilidades específicas. Por fim um anexo apresentando uma das composições realizadas ao longo dos estudos de doutorado: não é propriamente uma análise mas uma apresentação dos procedimentos e principais enfoques da composição da peça Window into the pond.

Apresentando esta tese gostaria então de especificar um pouco mais cada um dos capítulos, ao menos apresentado o percurso que descrevem.
 

Capítulo 1 e 2


Nesses capítulos a leitura da repetição se deu a partir de uma inversão: a repetição estrita do minimalismo comumentemente associada com uma repetição do mesmo é, num primeiro momento da tese, lida como possibilitadora de uma repetição que deixa transvasar a diferença, enquanto sua antípoda, a música serial, com sua abundância material (sobretudo timbrística), é associada a uma repetição do mesmo. Foram delineadas então repetições de naturezas distintas que ocorrem simultaneamente em qualquer música e em qualquer escuta, mas que neste caso são delimitadas e grifadas pela teoria musical que gerou e comentou tais práticas musicais. É o caso do serialismo que buscando definir com clareza um elemento unificador acaba por se basear numa repetição do mesmo, repetição de um mesmo conceito que percorre toda a peça na forma da série: uma série à qual todos os elementos da estrutura de alturas estarão relacionados por jogos de equiparação do tipo analogia, identificação e semelhança; jogos que em suma não põem em cena o potencial de diferenciação, excepto aquele bem comportado da variação temática, rítmica, etc. Quanto ao minimalismo o que ressaltamos foi a presença de uma repetição que deixa aflorar a diferença material, sobretudo nas obras de Steve Reich e John Adams, nos procedimentos de defasagem que geram uma grande quantidade de batimentos de harmônicos e uma multiplicidade de quadros texturais inabarcáveis numa só escuta.

O que saliento no entanto é que tanto uma escuta da diferença material quanto uma escuta do mesmo conceitual, não são atributos exclusivos de um modo composicional ou de outro, pois também encontraremos a diferenciação material no serialismo assim como uma repetição do mesmo no minimalismo. Embora distinguindo esses dois extremos, uma repetição negativa do conceito e uma afirmativa da diferença, o fato é que elas se envolvem uma a outra. Esta dualidade percorre o primeiro capítulo, mas é desfeita ao segundo.

O segundo capítulo trata de desfazer a dualidade que norteia o primeiro, apresentando uma terceira possibilidade: a repetição do diferente. Se nas duas vertentes composicionais a repetição foi vista sob uma ótica representativa, ou seja uma repetição que é representada num conceito e uma diferença que é representada pela variedade de nuances do material, nesta terceira busco uma leitura da repetição e da diferença fora dos limites da representação, tal qual propõe Deleuze em Diferença e Repetição. Neste capítulo a obra de Deleuze se faz mais presente, sendo insclusive o momento em que apresento algumas das fórmulas deleuzeanas que percorrerão a tese. O título do capítulo refere-se à idéia de música e complexidade, levado, de certo modo, pela denominação "nova complexidade" dada as obras de compositores mais recentes, onde sobressae a figura de Brian Ferneyhough.

O segundo capítulo não fala apenas de Ferneyhough, mas traça um percurso da música de concerto no século XX, apresentando diversos elementos que favorecem uma escuta da complexidade e da diferença em Stravinsky, Varèse, Xenakis, Messiaen, Luciano Berio e Brian Ferneyhough. De um modo geral realça-se o uso de permutação e a proposição de uma composição descentrada que se tem um elemento unificador, este não é proeminente, e sobretudo não linear pois, mesmo nas direcionalidades presentes na obra de Berio pode ser salientado um comportamento irregular e não-linear. A idéia da composição como mônada entra aqui em questão ao salientarmos uma composição que não tem pontos relevantes de quebra e que ao invés de uma unidade é articulada pela ressonância entre seus formantes (características que Deleuze e Guattari apresenta para a fórmula do sistema rizomático).

Apresentando esta idéia de uma composição que se comporta como mônada indivisível, e como sistema complexo onde encontramos tanto a possibilidade de um caos generalizado contraposta a traços de ordenações locais, como o seu inverso, o que se faz presente é a questão da forma musical e suas implicações junto à memória da escuta. Uma escuta que faz uso da memória curta em contraposição à uma escuta representada que se relaciona a uma memória longa. Deste modo distinguem-se três escutas:

a) a da música serial, cuja diversidade material e figural está reunida num conceito único que se repete como um mesmo conceito. Para isso o papel do ouvinte é o de unir elementos por traços de identidade, analogia e semelhança, e ele depende da memória longa para unir elementos que se dão à distância. E neste caso esquecer significa perder o fio da meada. Ela remete a uma segunda síntese do tempo tal qual denomina Deleuze: uma síntese da memória.

b) a da música minimalista em qual a repetição é vista como repetição do material. A memória longa aqui não entra em questão, a própria peça não nos deixa esquecer visto o alto grau de reiteração dos seus elementos frásicos, e a memória curta é também abortada a cada passo. A unidade da peça está no seus elementos reiterados até mesmo em experiências mais recentes em que os padrões reiterados têm uma menor permanência. Porém, esta não-necessidade-de-unir deixa ao ouvinte um espaço para a escuta das nuances do material. A síntese do tempo evidente aqui é a primeira de um hábito, repetição material e nua.

c) a terceira escuta seria aquela que remete à música complexa, ou melhor uma escuta do heterogêneo, que tem por potencia a multiplicidade, a possibilidade de escutas simultâneas. E que reflete a terceira síntese do tempo, repetição do diferente. Séries de diferenças que se sobrepõem e se interrelacionam a qualquer ponto, como num rizoma.
 

Esta breve conclusão impõe no entanto a necessidade de um estudo da repetição na escuta, o que por sua vez implica estudar a idéia de um objeto-sonoro, de um objeto-musical e de um objeto da percepção.

Capítulo 3 e 4


O capítulo 3 dedica-se a estudar algumas abordagens da escuta musical diretamente relacionados com a música contemporânea: as abordagens de Ivanka Stoïanova e J.-F. Lyotard, mencionando diretamente a música repetitiva e a repetição em música, e a visão de Pierre Schaeffer apresentando a idéia de objeto-sonoro e de escuta acusmática, realçando modos distintos de escuta: ouir, écouter, entendre e comprendre. Os quatro casos implicam uma reação do ouvinte: o ouir da escuta inconsciente (ruído de fundo); o écouter onde o sujeito já busca identificar os dados sonoros que o som indica; o entendre que permite dois momentos, o do ouir-entendre (escuta atenta que chama atença para a espacialidade do som) e o do écouter-entendre (aprofundamento nas nuances do objeto); e por fim o compreendre (a seleção de um sisgnificado em meio a uma cadeia de significados). A relevância desta abordadem está no enfoque que cada qual dá à uma escuta do objeto-sonoro (tal qual o definiu Schaeffer) e de suas nuances como modo de enfatizar uma escuta do diferente.

Embora o diferente aqui seja aquele diferente material, os três autores apresentam diversos dos elementos que constituíram, ou mesmo constituem, um instrumental teórico ainda em voga entre musicólogos e compositores. Assim, para apresentar melhor tais aspectos de cada um dos textos eles são antecedidos por uma leitura de Diferença e Repetição de Gilles Deleuze, ressaltando o que deleuze entende por repetição e por diferença numa filosofia da não representação.

Valendo-se desta leitura de DR e das formulações de Lyotard, Stoïanova e Schaeffer, o capítulo 4 trata da relação objeto-observador, contrapondo visões de um cognitivismo representacionistas e um não-representacionistas apresentado na idéia de enação de Francisco Varela e no ritornelo de Deleuze e Guattari. Deste modo as três síntese do tempo relacionam-se aqui a três escutas distintas: textural, figural e gestual. Ao invés de apresentadas como momentos estanques da escuta, não só realçamos o fato de que uma envolve e é envolvida pela outra, como também buscamos para cada uma demonstrar como incidem simultaneamente sínteses distintas, exemplificando, a cada passo, com enunciados musicais que favorecem uma ou outra, ou mesmo que permitem uma escuta flutuante entre uma e outra, dentro de uma só mas com sínteses distintas, etc..num jogo permutativo incessante e sem limite claro.

Concluindo então este capítulo propomos quatro pontos:

a) a instabilidade e inatingibilidade de qualquer "objeto sonoro" puro. Ele não existe em si mas configura e é configurado por uma escuta.

b) a textura, a figura e o gesto (três aspectos texturais) como territórios contemporâneos a uma determinada escuta, e não mais como unidades estanques e hierarquizadas.

c) a escuta como instável e multipla configurando territórios de escuta multilineares (paralelos e contemporâneos uns aos outros);

d) a relação de textura, figura e gesto com sínteses distintas do tempo, isto é, propondo repetições de naturezas diferentes. O que nos leva a dizer, p.ex., que o que torna uma textura específica não é o material que a constitui mas a escuta que objeto, observador e maio se permitem.

e) o objeto da composição não se limita mais no enunciado e nas interpretações que sucita, mas sobretudo nas escutas que permite simultâneas ou não. O objeto da composição é assim a própria escuta compreendida no seu sentido mais amplo: da escuta surda (escuta intelectual, que não precisa envolver a idéia de som, por exemplo) à escuta plena do objeto-sonoro instável e constantemente reconfigurado e reconfigurante.
 

PARTE II

Messiaen e Ferneyhough


Os dois capítulos que compõem a segunda parte da tese apresentam uma leitura da questão da repetição e suas pertinencias em diversas obras de Olivier Messiaen e Brian Ferneyhough. A escolha desses dois compositores se deu por duas razões: a primeira suas posições no quadro da música do século XX, Messiaen como uma das bases de sustentação dos principais tendências musicais da segunda metade do século (do serialismo de Boulez e Stochausen ao espectralismo de Murail, Grisey e Tremblay) e Ferneyhough como principal representante da "nova complexidade", e segundo a relação dos dois compositores com a obra de Deleuze, embora em posições opostas, Messiaen constantemente referido por Deleuze e Ferneyhouhg citando constantemente Deleuze em suas conferências, e sobretudo em seus cadernos de rascunhos e notas de concerto. Indo além de uma mera coincidência, o que determina esta escolha é principalmente o fato de que podemos encontrar na obra dos dois compositores elementos claros para referirmo não só a fórmula da diferença e da repetição mas também a de rizoma, e principalmente a de heterogênese da escuta.

Tendo em vista diversas das posições tomadas ao longo da tese no que tange uma estética, uma filosofia, e por fim uma análise "representativa", estes capítulos não são análises no sentido corrente do termo. São mais leituras e apresentação da noção de multiplicidade na obra desses compositores, onde por alguns momentos não se pode fugir de um enunciado ou outro representando seus elementos, ou mesmo reduzindo alguns de seus principais procedimentos. Deste modo, com a obra de Messiaen traçamos um percurso que apresenta a idéia de escuta rizomática e cartográfica, e com Ferneyhough as fórmulas do diagrama (desenvolvida por Deleuze a partir de Francis Bacon, em Bacon, Logique de la sensation) e da repetição como dobra e desdobramento.

Ver em anexo apresentação dos procedimentos utilizados na composição Window into the Pond.
 

Conclusão


Por fim a conclusão onde, como já notei anteriormente, não apenas concluo como busco dar forma a idéia de uma heterogênese da escuta, que embora de maneira indireta, se faz presente ao longo da tese. A idéia de heterogênese da escuta, ao contrário de uma escuta que tenda a unifermização, que dependa de elementos unificadores e que sucite a homogeneidade, enfatiza não só a escuta que permite camadas sobrepostas de escutas e pontos de partida irrepresentáveis, mas que também realça o próprio ato de compor como tendo sua heterogênese.

Resumindo o que trata a conclusão da tese podemos tomar como pertinente algumas observações feitas para a composição musical ressaltando que para não naufragar a repetição do diferente na escuta da diferença representável trata-se de fazer da composição o ato de inventar as condições de uma escuta das incompossibilidades, que torne viável as condições do diverso. Para o que enfatizamos a importância de uma música nova, não capturável pelos mecanismos do senso-comum, cujas componentes essencias são:
a) a revolta, a recusa a ficar instalado e satisfeito;
b) a lógica, o desejo de uma razão coerente;
c) a recusa do que é particular e fechado;
d) o gosto pelo encontro e pelo acaso, o engajamento e o risco.

Se na tese em alguns momentos deu-se uma enfase a tornar mais claros para uma análise musical algumas das fórmulas Deleuzeana, é importante ressaltar que tais fórmulas rebateram também sobre a composição musical, ganhando nova forma enquanto fórmulas composicionais.

Por fim, gostaria, ainda nesta apresentação, de fazer um pequeno agradecimento à fapesp que tem me permitido compor livremente deste minha bolsa de iniciação científica em 1980, passando pelo aperfeiçoamento, até os dias de hoje com a bolsa de doutorado que me foi concedida para realizar esta tese.
 
 
 

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