Window into the Pond


Partir de um elemento simples. Uma frase modal, um gesto qualquer catalogável, absorvido pela escuta tradicional. Reiterá-lo. Depois, retorcê-lo, doformá-lo. Raspar algumas partes, remover totalmente outras. Sobrepor-lhe elementos, interromper o seu curso e incrustar outros elementos, todos estranhos e divergentes ao sistema em que se enquadrava o primeiro gesto. Realizar a composição sem um ponto fixo de origem e sim um falso ponto ao qual se somam outros pontos, todos divergentes. Tornar simultâneos e possíveis os sistemas divergentes.

O primeiro gesto, se bem que depois abandonado, este é um gesto figurativo ou mesmo narrativo, ele representa e demarca um território modal ou tonal, delineia uma série de ressonância sonora, um espaço métrico, um espaço simbólico. E essa representação é predeterminada. O gesto simples, assim determinado, representa e é representado por um determinado domínio de sistemas fixos de referência. Torcer este espaço de representação é o que busca a fórmula pictórica do "diagrama", tal qual define Francis Bacon: partir de uma forma figurativa, intervir sobre ela um diagrama para desarranjá-la, resultando daí uma forma de natureza totalmente diferente chamada "figura". Deste modo, o que se busca não é despojar o primeiro gesto daquilo que ele representa, mas retorcê-lo a ponto de tornar obscuro tal índice de representação, fazendo com que esse se perca, seja dominado pela diferença, e precise ser refeito a cada momento, a ponto do quadro original de representações ser "irrecomponível".

Pode-se tomar esta idéia, a do diagrama como uma porta de entrada para falarmos da composição Window into the Pond (1). Nesta peça a idéia de "diagrama" não só é adotada como um procedimentos isolado, ela reflete sobretudo uma proximidade com a pintura. E esta peça a relação com a pintura estende-se ao título da peça, uma gravura de Hundertwasser onde diversas janelas aparecem refletidas num poço. Prosseguindo nesta proximidade com a pintura outros procedimentos entram em jogo: (a) as massa coloridas difusas de Monet, que num olhar à distância delineiam ninféias mas que olhando de perto desvendam um universo de pequenos detalhes, de flutuações, de zonas de fusão e zonas de isolamento de cores e formas, sem mais aquela função servil à representação de formas pois tornam-se um plano de sensação possível; (b) o desenhar rítmico de Entre Pirla e Pal, de Paul Klee, que prolonga a idéia de acentuação métrica em níveis distintos, desenhando o ritmo não como seqüência de blocos métricos, mas como seqüência irregular de alterações no campo das alturas, uso incessante de recursos timbrísticos, composição de pequenos quadros polifônicos; (c) o modo de pintura de Miró - lançar gotas de tinta, criar manchas, e depois redelineá-las criando figuras que não só desvendam uma forma figurativa simples e demarcam um território de relações, mas que ainda permanecem abertas a novos conjuntos de relações, criar a partir de acidentes; (e) e, por fim, Bacon, seus diagramas - raspagens, manchas, deformações de uma figuração inicial.(2)

O "diagrama", as acentuações irregulares, as manchas "indesejáveis" como ponto de partida, ou mesmo o ato de compor conhecendo apenas as ações locais, tem por fim aproximar-se de uma música que faça presente a escuta de multiplicidades. Um primeiro sinal desta multiplicidade estaria no fato de que, ao tornar difusa a gênese da composição, não é possível determinar um ponto exato desta gênese que determine um elemento unificador de todo o sistema. É assim que em Window diversas idéias surgiram, simultaneamente ou em momentos distintos, sem seguirem uma ordenação rigorosa previamente estabelecida. Algumas foram se fazendo presentes ao longo do processo, transformando aquilo que se dava como um ponto - já difuso - de origem. Deste modo diversas idéias vieram se tornar possíveis e simultâneas neste composição, porém sem apontarem um ponto de convergência: elas não ocupam um mesmo espaço pois não se dão num mesmo plano de composição, uma idéia não contradiz a outra pois não há um grau de relação que permita tal idéia de contradição dos disparates ali reunidos. A presença de tantos pontos de origem, do cruzamento de idéias estranhas umas às outras, se deu em grande parte pelos procedimentos utilizados, os quais descreveremos mais detalhadamente a seguir, não fazendo deste texto uma análise, mas sim uma apresentação de algumas estratégias composicionais utilizadas na composição de Window into the Pond.

Coexistem os seguintes procedimentos, que trataremos em seguida: (a) desmontagem de uma forma linear; (b) composição por janelas, (c) deformação de forma gestual clara, (d) composição por manchas; (e) melodias enclausuradas, (f) constituição de espaços caóticos. Cada um desses procedimentos põe em jogo algumas das questões apresentadas nos capítulos da primeira e da segunda parte da tese: composição por proximidade, ou seja, atenta aos resultados locais e não globais, e a sobreposição e justaposição de elementos heterogêneos. O que se procurou com isto foi "inverter o sentido de desenvolver" como argumenta Deleuze em Le Pli (3) designando o que ele chama por uma epigênese: "a aparição de organismos e de órgãos que não são mais preformados ou encaixados, mas formados a partir de outras coisas que não lhes são semelhantes". Não falaríamos de uma composição por dobras, já que associamos tal idéia à obra de Ferneyhough, mas uma composição por engelhamento que não resulta do simulacro de simetria da dobra, mas sim do ato de forçar os elementos, de amarrotá-los, como um lenço ou uma folha de papel.

desmontagem


A partir de uma figuração linear, presente na própria composição, ou em uma composição anterior, incidem diversos modos de desmontagem, de fragmentação. Após a composição de uma primeira versão de Window into the Pond, a peça foi desmontada e remontada, aproximando elementos originalmente distantes e distanciando aqueles que eram decorrências diretas. Outra alteração foi a duplicação de algumas passagens, que aparecem como ecos distantes umas das outras ou na forma de reiterações diretas, congelando sobre si o curso do desenvolvimento. Cada uma das linhas instrumentais (flauta baixo, clarinete baixo, violino, violoncelo e piano) sofreu tal desmontagem. Deste modo as possíveis linhas direcionais foram quebradas, seja pela desmontagem por cortes, seja pela sobreposição de linhas, o que resultou em texturas, figuras e gestos sempre instáveis, buscando enfatizar assim a escuta localizada e não mais para a forma geral de desenvolvimento.

O que é interessante notar é que a composição por decomposição não corresponde a um ciclo ou quadro de operações a ser seguido. Se houve nos primeiros momentos da composição um quadro preestabelecendo a forma, ele agora é abandonado e desfeito. E este processo não precisa acabar. Ele pode ser ininterrupto, e talvez só parar quando for dado início à composição de outra peça. Sempre há o espaço para operar uma nova decomposição e recomposição. Isto se deu diversas vezes na composição de Window. Após finalizada uma primeira versão foram incluídas passagens provenientes de outras peças, ou alguns trechos foram novamente embaralhados. Este processo ampliou irregularmente a duração das linhas da peça (sobretudo as linhas instrumentais) e fez com que novos desencontros fossem produzidos, mas ele pode ser retomado sempre que se quiser.

Os cantos foram tratados e "sampleados" para seqüenciação. A ordem de seqüenciação deste material seguiu um forma direcional: partindo de pequenos fragmentos em direção a uma recomposição, até que as amostras fossem apresentadas em sua íntegra e deixassem claras as características do material inicial. Apaeav foi realizada a partir desta fita, porém regravada de modo que fossem feitas ranhuras na superfície sonora e deformações as mais diversas.(4) O processo de decomposição veio num segundo momento, em que a seqüência linear e direcional da fita suporte foi desmontada e remontada segundo critérios de permutação e sobreposição.

janelas


A idéia de uma composição por janelas se inclui, de certo modo, entre aqueles procedimentos de decomposição e desmontagem de um mecanismo ou de um elemento inicial linear. Porém, enquanto o processo de decomposição é posterior à composição de uma primeira versão, a composição por janelas se desenvolve desde os primeiros esboços do plano de composição correndo paralelamente à composição de cada linha instrumental. A idéia de janelas se dá no plano da forma, sem no entanto constituir-se como tal. Sobre uma primeira seqüência, ainda no esboço formal, são abertas algumas janelas - incrustações - que dividem a seqüência em duas partes geralmente assimétricas. Em cada janela é inserida uma outra seqüência, linear ou não. As novas seqüências provém tanto dos esboços específicos para a composição em curso, como de material originado de composições anteriores.(5) Cada seqüência pode ser formada por séries de diferenças, reiterações, linhas direcionais, blocos de textura, blocos rítmicos, ou mesmo por gestos (catalogados ou não). Ao abrir uma janela as seqüências se fragmentam e as características que mantinham-nas ligadas à suas outras partes ficam difusas, muitas vezes só reencontráveis pela análise minuciosa da partitura ou até mesmo dos esboços originais. A composição é realizada, assim, como uma espécie de desdobramento endógeno, congelando a atenção sobre um só ponto, que desdobrado revela diversas possibilidades composicionais.

Deste processo decorrem novas linhas de relação entre elementos que foram gerados em momentos, em situações, e mesmo em sistemas distintos. A fórmula da dobra, tal qual a desenvolve Deleuze a partir de Leibniz, é aqui utilizada. Ao invés de se pensar a peça como uma linha, como um círculo, uma espiral, ela é pensada como uma folha de papel que, ao ser amarrotada permite que áreas distantes se aproximem e se toquem. Esta composição por "engelhamento" traça, assim, uma correspondência com algumas idéias desenvolvidas por Deleuze em Le Pli, principalmente quando ele nota que "não se diz múltiplo somente aquele que tem diversas partes, mas aquele que se dobra de diversas maneiras". (6)

manchas


Miró quase nunca utilizava uma tela limpa, tal qual saída da loja. Qualquer acidente era realizado sobre a tela, o fundo era preparado com a limpeza dos pincéis ou mesmo derramando um pouco de gasolina, e quando se tratava do papel como suporte ele derramava água.(7) Uma mancha, um rasgo, uma linha, ou um gesto feito com o pincel, esses elementos eram displicentemente lançados sobre a tela. Miró os admirava quotidianamente, até que de uma mancha, de algo disforme fosse possível entrever um ponto de partida. Guardando as respectivas especificidades, este processo de gerar uma mancha foi empregado ao longo da composição de Window. Assim, sobre alguns elementos disformes foram realizados traços que determinassem contornos locais e instáveis. Esses contornos funcionam como fatores de coesão momentâneos, que dão uma forma mais clara a passagens praticamente caóticas. É o que procurou-se realizar com a inclusão de reiterações de notas e com a incisão abrupta de acordes curtos. Existe aqui uma equiparação com a ação do diagrama, porém no sentido inverso. De uma figura, busca-se delinear uma figuração. Porém quando esta vem à tona ela já vem deformada, prevalecendo o aspecto figural.

Este procedimento aparece em Window, porém ele foi trabalhado anteriormente em uma peça para quarteto de cordas e conjunto instrumental. Nesta ocasião o que se propôs foi a conjunção de duas composições, uma realizada sobre a outra. Após a composição do quarteto de cordas foi realizada uma segunda composição para conjunto instrumental. Este modo de compor refere-se à composição de Chemins de Luciano Berio: sobre suas Sequenze para instrumentos solistas, o compositor compõe novas peças que utilizam as sequenze como suporte. Assim como nas peças de Berio, a primeira peça, a peça suporte, é uma peça a parte, já o que sobre ela é acrescentado só existe se em conjunto com este suporte. Em Window nenhum dos dois momentos constitui-se como pela a parte, visto que eles estão desmontados, e que são pequenos fragmentos encadeados. Porém, posteriormente à composição desta peça este procedimento foi reutilizado em duas composições para tape e instrumentos, onde tanto a parte pregravada quando a parte instrumental compõem partes independentes embora sincronizáveis.

gestos deformados


A deformação de gestos primários, elementares, "o gesto puro", é talvez o procedimento que mais presente em Window into the Pond. Um dos gestos deformados é simplesmente uma frase melódica modal, um trilo que se expande; na verdade um fragmento melódico proveniente de outra peça.(8) Os fragmentos sofrem então diversas operações de limpeza, de borrões, de incrustações de elementos estranhos ao sistema em jogo. Esta forma de composição remete ao "diagrama" da pintura de Francis Bacon. A relação com Bacon está nos modos de deformar este gesto e em que tipo de gesto. Deformar um gesto inicial por descamações, por raspagens, por manchas provocadas pelo espalhar da tinta ainda fresca de um figura recém pintada, resultando ora em manchas sobre as imagens, ora numa espécie de véu entre elas e o espectador.

Como já foi visto para os procedimentos anteriores, este também tem por base algumas composições anteriores que já colocavam em questão a gênese e o tratamento "diagramático" e "figural". Uma operação de descamação e deformação foi realizada em uma composição anterior intitulada Apaeav. Esta peça consiste em um jogo de deformações sobre o tape de outra composição, Canto de Cura (para tape e conjunto instrumental). O tape desta primeira peça foi feito com base em amostras de música indígena brasileira, precisamente alguns cantos de cura de índios Suyás (Xingu-Brasil). O suporte de Apaeav foi então o tape de Canto de Cura, porém regravado. Como sobre o original sobrevinham diversos ruídos, visto a matriz dos sons ser um long-play em más condições, os ruídos foram considerados para desfigurar a figuração original. Uma série de procedimentos prolongou esses ruídos na forma de "ranhuras" sobre camadas limpas de som.

Em Window este procedimentos foi retomado. Não tendo os recursos da música eletrônica, mas os recursos da escritura, cada pequeno gesto foi deformado para fazer aflorar uma figura. Um sistema de filtragens, um pouco a exemplo dos filtros utilizados por Ferneyhough, operam deformando o gesto original em dois níveis distintos. O primeiro poderíamos chamar de nível informal, já que compreende uma decisão local e momentânea, como a redefinição do campo de ressonância espectral por meio de filtros específicos, pela adição e subtração de ruídos, ou ainda pela inserção de pequenos gestos. Já o segundo nível de deformação, chamaremos de nível automático e resulta de operações matemáticas, sobretudo de permutações; neste caso o gesto inicial sofre deformações que não são diretamente controladas pelo compositor, mas pelos procedimentos envolvidos, e são de certo modo imprevisíveis. Pode-se dizer que os dois níveis têm resultados semelhantes, porém um deles é controlado passo a passo pelo compositor enquanto o outro corre solto gerando gestos imprevisíveis.

Um último aspecto deste procedimento de deformações foi o de permitir um trabalho composicional no âmbito das pequenas transformações, pequenas modulações do material. Ao invés de realizarmos a composição seguindo um esquema extensivo seqüencial impôs-se uma espécie de composição cartográfica. Uma grande carta de transformações das figuras iniciais foi composta a partir de filtragens, permutações de elementos diversos e pequenas incrustações. Posteriormente este material foi disposto num mapa, podendo ser acessado ao acaso, a partir de qualquer ponto, sendo que cada fragmento, lado a lado, possuía o mesmo peso composicional. A carta permitiu conhecer as transformações de cada elemento da figuração original sem dar, no entanto, qualquer referência sobre o plano geral da peça mas sim sobre o tratamento local.

Realizada do modo descrito acima, a deformação de um "gesto puro" é relevante para a multiplicidade e escuta difusa. Ela permite a de inclusão de gestos ou elementos próprios a outros sistemas, distantes do sistema em que é trabalhado o gesto inicial, explorando a fórmula da compossibilidade de sistemas disparatados. Por outro lado, o uso constante de modelos reiterativos simula possíveis pontos de origem, estabelecendo relações que tornam ainda mais difuso o ponto de origem,

melodias enclausuradas


Talvez este seja o procedimento mais distante à pintura utilizado em Window into the Pond. A idéia de melodias enclausuradas se originou da escuta e da análise de cantos de pássaros. São proto-melodias que gravitam em torno a uma ou mais freqüências. Ela é composta pela permutação de alturas que gravitam em torno de uma freqüência optimal.(9) No desenrolar do processo outras alturas vão sendo incluídas, geralmente aludindo novos polo de atração. Porém tais notas acrescentadas são chegam a demarcar novos âmbitos modais. A melodia permanece, assim, se lançando de um polo a outro como que a procura de uma linha de fuga. Em Window o próprio gesto inicial delineia uma melodia enclausurada, e as linhas de fuga foram deixadas a cargo das diversas filtragens, permitindo o surgimento incontrolado de novos campos de ressonância espectral (ou até mesmo campos de atração "harmônica", no sentido dado ao termo por Edmond Costère em Mort ou Transfiguration de l'Harmonie). Afora o jogo de alturas, outros parâmetros concorrem no desenhar destas linhas de fuga. A inclusão de ruídos, decorrentes de um tratamento expandido da técnica instrumental (extended technique), e a mudança no nível dinâmico, pequenas acentuações em níveis de dinâmicos distintos, auxiliam na demarcação de novos territórios, não apenas "harmônicos" mas timbrísticos. Em resumo, a peça toda pode ser tratada como um jogo de fragmentos de melodias enclausuradas.

espaços caóticos


De uma certa maneira quando falamos dos procedimentos apresentados acima, falamos da "forma". Aliás, mesmo chegando à conclusão de que o "plano de composição" desfaz o "plano de organização", que ele põe a força e o material, no lugar da forma e da matéria, a relação música e repetição como a tratamos ao longo da tese, aponta para uma preocupação com a forma musical: como trabalhar a forma a ponto de desfazê-la, de tirar-lhe a primazia, de restituir a sua potência intensiva, de livrá-la da leitura em extensão, livrá-la da sucessão, livrá-la de um tempo linear e cronologicamente estriado.

Pensando então a forma, o que podemos notar com os procedimentos empregados nas composições aqui referidas, é que eles permitem não apenas pensarmos espaços claros, nitidamente delineados, mas também podemos pensar na presença de espaços sem clareza, não delineados. Pensaremos o caos não como desordem, nem como ausência de forma, mas como espaços transitórios onde afloram formas locais instáveis e de curta duração, chamando assim a atenção para uma escuta que enfatize uma memória curta e não mais a memória longa própria a ligar os elementos distantes da forma, como numa sonata clássica, por exemplo. Deste modo a composição é aqui trabalhada como um espaço de possibilidades, um corpo não definitivo sobre o qual se esboçam e se dissipam formas possíveis.

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Encerrando esta apresentação dos procedimentos utilizados em Window into the Pond, é importante salientar um outro elemento: o título. À maneira de Miró, o título não é anterior à peça e nem está relacionado, como uma representação, como uma metáfora, com aquilo que se ouve nela. Pelo contrário, o título é mais um elemento disparatado. Ele tece um contraponto ao resultado sonoro da peça, e de diversas maneiras acaba interferindo na própria escuta. Ele é mais um elementos que se soma aos procedimentos acima, no sentido de uma heterogênese da composição, e que estaria relacionado a uma escuta háptica, onde múltiplas faculdades entram em ação conduzidas por caminhos separados. Com base nos títulos de cada peça, a imaginação é levada por um caminho que não está entre aqueles que geraram a peça, mas que se compõe num elemento essencial para a desejada heterogênese da escuta. Esta é a razão do caráter alusivo dos títulos, chamando por imagens e procedimentos que não estiveram presentes ao longo do processo composicional: jardins, silêncio, ninféia, folhas, janelas, espelho d'água, etc.



(1) Window into the Pond foi composta em 1995 como encomenda para a turné latino-americana do Ensemble Contrechamps, grupo suíço voltado principalmente para a música contemporânea e faz parte de uma série de composições realizadas ao longo do doutorado, junto aos estudos teóricos concernentes à tese. Por se tratar da leitura de uma peça desenvolvida como parte do doutorado, este anexo será realizado no formato de um relatório de atividades composicionais, o que implica em tomar por referências outras composições realizadas no curso desses estudos. texto
(2) Essa proximidade com a pintura aparece em diversas outras peças que serão indiretamente comentadas ao longo desta análise: os silêncios de um estranho jardim (1994) para flauta solo - referência a Klee não apenas no título, mas principalmente no pensamento rítmico empregado; ninféia encarcerada (1994), para oboé solo - referência à Monet; Pássaro preto, sol e menina em vermelho (1993) para conjunto instrumental, trópico caótico (1995), para piano solo, e apaeav (1995), para fita solo - realizadas a partir de algumas fórmulas pictóricas de Miró; o jardim das folhas dobradas (1996) para dois percussionistas e fita magnética, e conferência (1996) para conjunto instrumental e fita magné (3) Deleuze, Gilles. Le Pli, Paris: Les Éditions de Minuit.1988. p. 14 texto
(4) A fita original continha diversos ruídos, intencionalmente mantidos para guardar a referência com a origem do material: um velho long-play (LP- T001, TACAPE, Série Etnomusicologia, 1982, registrado pelo etnomusicólogo Anthony Seeger). O tratamento sonoro realizado em Apaeav fez com que fossem salientados os "cliks" e chiados do disco original, prolongando esses ruídos sobre camadas de som limpo da amostra original. texto
(5) Em outras composições as janelas foram utilizadas inclusive para a inclusão de algumas peças curtas desenvolvidas anterior ou paralelamente. texto
(6) Pli, p. 59. texto
(7) Charbonnier, George. Le monologue du peintre. Paris: René Juillard. 1959, p. 121; Miró, Juan e George Raillard. A cor dos meus sonhos. Trad. Neide Luzia de Rezende. São Paulo: Estação Liberdade, 1990, p. 115. texto
(8) A frase melódica utilizada aqui como "gesto puro" se originou de um pequeno fragmento melódico desenvolvido em Trópicos do Caos peça para piano solo composta simultaneamente a Window. texto
(9) Por freqüência optimal entenda-se aquela freqüência de maior reincidência no canto de um determinado pássaro, e que funciona como uma espécie de polo ao redor do qual gravita a melodia. texto

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