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Poema para Ze Damas - Xie He : música para modular a respiração


Silvio Ferraz

1.
É possível existir em um mundo sem palavras, um mundo em que ficar observando o simples balançar de uma árvore ou de uma cortina é o suficiente. Mundo sem palavras e sem significados, no qual o simples movimento das coisas ganhando e perdendo forma é o suficiente para continuar existindo.

2.
No século V, o pintor e calígrafo chinês Xie He [1] definiu seis cânones, ou seis leis (Liu Fa - 六项法律), para a pintura clássica chinesa:

1. vitalidade rítmica ou ritmo espiritual
2. exprimir estruturas por meio do pincel
3. desenhar formas conforme as formas da natureza
4. distribuir as cores apropriadamente
5. compor segundo os objetos
6. transmitir o modelo clássico

3.
Para cada um dos cânones que definiu, Xie He e outros pintores, ao longo dos séculos que seguiram, definiram detalhes sempre em ressonância com os princípios do Tao, sobretudo aqueles encontrados no Tao Te Ching de Lao-Tseu.[2]

4.
No detalhamento dos cânones da pintura chinesa, reafirma-se sempre a ideia de que aquilo que diz-se das formas da natureza ("conforme as formas da natureza" ou "segundo os objetos") não se refere apenas ao que vemos, do que nos é dado pela percepção, mas também do que não nos é dado pela percepção enquanto fenômeno representável.

5.
O vento é um não visível (o que nos lembra Paul Klee e sua ideia de "tornar visível o não visível").[3] Quando vemos o vento, vemos ele se manifestando nas coisas. O vento desenha sempre ciclos nas formas que engendra e imprime estes seus ciclos de fluxo e contra-fluxo nas coisas com as quais se encontra. Assim como o vento as forças que fazem crescer ou enfraquecer também não são visíveis e só se fazem notar naquilo que fazem crescer ou enfraquecer.

6.
O primeiro cânone de Xie He:

氣諧生動 [4]

"o respirar unido ao movimento do que vive", ou ainda "o sopro (ou ritmo) transversal expresso no movimento da vida".

7.
O que "são", no plural, o "movimento do que vive" do qual fala o primeiro cânone de Xie He? Não é difícil de encontrarmos este movimento no levantar-deitar, respirar-espirar, soprar-inalar, andar-parar, sentar-levantar, viver-morrer, nascer-viver etc. Tudo que fazemos é assim atravessado por este sopro transversal. Atravessado pela respiração: um movimento de vai-e-vem, movimento pendular que atravessa tudo que existe. O sopro seguindo um ritmo, um jogo de vai-e-vem, o fluxo de um rio. E isto já está no primeiro ideograma do Cânone (qi, ) formado pela conjunção dos ideogramas de arroz () e vapor (), ou seja "vapor que sobe do cozer do arroz".

8.
O arroz e o vapor que compõem o primeiro ideograma do cânone correspondem à respiração, ao sopro do corpo humano e seu ritmo. Esta respiração é cíclica, ela flui sempre expandindo-se e retraindo-se. Ela se move em sístoles e diástoles. E é este fluir cíclico que reúne as coisas. O pintor chinês pinta este ritmo unindo as coisas que vê com aquilo que ele não vê, mas que atravessa as coisas.

9.
Na música (lugar desta palestra) o próprio som tem muito do movimento do sopro, deste respirar que diz o primeiro cânone de Xie He. O som é cíclico, ele é como o sopro e seu movimento de ir-e-vir, de ondular como o rio, e oscilar como o pendulo. Um som como o da voz, ou da flauta, são também este sopro, eles são o sopro interior que toma forma em um corpo ressonante. O som da percussão também é este sopro, embora em uma cadeia mais complexa: do sopro interior ao braço que se move, do braço ao som do instrumento que por sua vez descreve também ciclos em seus movimentos periódicos regulares e irregulares. Assim, o sopro interior ganha corpo, e este novo corpo é o som.

10.
O que chamo aqui por corpo? Algo bastante simples, um fluxo de energia que descreve uma curva entre aparecer e desaparecer, movimento que pode descrever três curvas distintas:

1) aparecimento brusco - desaparecimento lento
2) aparecimento lento - desaparecimento lento
3) desaparecimento lento - desaparecimento brusco

Estes três movimentos podem suscitar três ideogramas sonoros.



11.
O som respira, o ciclo do som respirando descreve um ritmo. E o primeiro elemento que posso dizer da música é que ela respira como uma coisa viva, ela deve respirar com uma coisa viva. E isto me leva à terceira das proposições de Xie He.

應物潒形

"Desenhar conforme as formas e imagens"

12.
O segundo cânone também pode ser expandido para imagens e formas visíveis e não visíveis. O som é forma da natureza e cantar conforme as formas da natureza é cantar conforme o som, seu ciclo de aparecer e desaparecer. E compor uma música é cantar conforme o som, conforme seus ciclos de aparecer e desaparecer.

13.
Uma música feita de sons e que fale de sons, como nos ensinams os gatos. Uma música que pode ser apenas fluxo de sons, e que pode oscilar conforme a forma da coisas da natureza, sobretudo a forma simples de respirar, de surgir e desaparecer. Esta sucessão natural não é necessariamente sempre a mesma: o fluxo tanto pode ser interrompido, quando se quer um efeito que seja abrupto, quanto pode ser seguido, quando se quer um efeito de algo calmo. Tudo segue assim podendo expandir-se em fluido ou interrompido, tranqüilo ou aflito. E mesmo este aflito expressa o ritmo natural, o vento forte que irrompe sobre uma árvore, a onda forte que surge repentinamente.

14.
Os sons podem ser abruptos, calmos, fluidos, interrompidos, simples, reiterados, estáticos ou móveis. Um quadro de ideogramas sonoros pode ser desenhado a partir de não mais do que quatro categorias, suficientes para escrever-se um "poema", distinguindo quatro categorias:

1) sons longos ou curtos

2) de textura rugosa ou lisa

3) de ataques ríspidos, suaves ou invertidos

4) de colorido modulado ou constante

 

15.
.....etc.

16.
Zé Damas era um pintor primitivista residente na pequena cidade de Tiradentes (MG). Seu tema era as ruas da cidade, as igrejas, o trenzinho, a serra de S.José Del Rey, os diversos pontos turísticos da cidade. O suporte para seu trabalho: cabaças, travessas de madeira, copinhos e caixinhas de pedra sabão, pequenas pedras irregulares. Pintava assim aquilo que os viajantes viam e pretendiam levar como recordação. Nada além disto.

17.
Na sala de entrada da loja-oficina de Zé Damas estavam também algumas fotografias; Zé Damas com personagens da televisão, Zé Damas no Egito e algumas surpresas como Zé Damas com Wally Salomão... Todas fotografias expostas em séries, como em uma sala de ex-votos.


18.
Por toda a casa estavam expostos os trabalhos de Zé Damas, seguindo a lógica da sala de ex-votos, os maiores reunidos na parte alta da parede (porque vendem menos), e descendo e em ordem decrescente os menores e ainda menores, até que sobre uma velha mesa prateleira baixa estavam as pedrinhas, os copinhos, pequenos imãs de geladeira etc. Ou seja, nenhuma ordem orientada por estética, tema ou coisa do gênero, a organização seguia uma seriação simples.


19.
Um dia levou-nos, a mim e Annita Costa, para conhecermos o seu pórtico, um templo a céu aberto. Já havia um bom tempo que vinha se dedicando a este templo em seu quintal (um quadrado de uns 400 metros). Ao longo dos três lados do muro do quintal seguiam pequenos quadros organizados em cruz, cada um retomando um de seus trabalhos e alguns fugindo à temática comum das lembranças de viajantes.

20.
Um dia Zé Damas caiu de uma escada e quebrou-se todo, fez uma promessa e curou-se, daí pagou a promessa com um pequeno quadrinho, seu único trabalho exposto em espaço público, na sala de ex-votos do Santíssimo Sacramento.

21.
Como de costume, em cada ida a Tiradentes costumávamos passar pela oficina de Zé Damas. Até que um dia encontramos a pequena loja um pouco vazia, alguns trabalhos enjeitados expostos nas paredes, alguns quadros grandes (justamente aqueles que não era diretamente ligados aos temas de turistas), e sua irmã que ali vendia o que sobrou. Faltava Zé Damas, ele havia falecido fazia uma semana.

22.
Com o triste desaparecimento de Ze Damas veio daí esta necessidade de fazer uma homenagem ao pintor amigo, para o que me propus a escrever uma espécie de música poema, e que fosse como que um passeio pelo quintal-pórtico-templo de Zé Damas; espalhada pelos quatro cantos da sala de concerto.

23.
Um poema sem palavras mas preenchido de fonemas de percussão. Um poema cujo significado de cada palavra não é nada além do que o ritmo que fazem fluir.

24.
Zé Damas pintava suas pequenas paisagens com a tinta tal qual vinha no tubo, sem misturas complexas, busca de tonalidades ou nuanças minuciosas. Impera em suas pinturas o vermelho, o verde, o azul e o amarelo. No céu sempre o azul, misturado um pouco ao branco das nuvens. Talvez o que chamasse mais a atenção não fosse cada uma das pinturas em separado, mas o conjunto delas e o ritmo que desenhavam na parede de sua oficina, assim como o ritmo que desenham no templo de seu quintal. E este ritmo talvez possamos chamá-lo de "série Tiradentes" de Zé Damas.

25.
Fazer uma música com todo este material (referências, imagens, lembranças) pede antes de mais nada que o material se torne irrelevante, pois é necessário fazer com que qualquer temática se torne tão simples que seja desnecessária para quem ouve. Neste sentido a música-poema para Zé Damas não pretende mais do que ser apenas uma sequência de sons que respiram, e que propõe uma escuta simples que é a de apenas propor que se respire junto com ela. E este respirar proposto por esta música tem como brincadeira o jogo de acelerar, retrair, fluir, interromper, ralentar...

26.
Respirar e fazer com que o ouvinte respire a todo tempo apenas o fluxo do som, um lugar quase que de presente pleno, onde o som que passou permanece apenas enquanto eco, mas não enquanto referência. O que importa assim é o som que está passando, o qual também não diz nada sobre o som que virá. Neste jogo o que sobressai é uma sequência de surpresas, ou não, face o surgimento, a cada momento, de novos sons que nascem e interrompem ou prolongam aquele que já está sendo ouvido. Presente e futuro imediato, uma escuta da duração. Corre tudo assim como o rio, sem futuro e a-histórico. Uma forma de escuta que talvez se possa comparar com a sensação de olhar o mar, ou olhar um bambuzal balançando ao vendo, ou ainda ouvir o cântico rangido dos balanços e gangorras de um parque de diversões.

27.
Leio então o quinto poema do Tao Te King de Lao Tseu que diz aproximadamente que:

"O espaço entre a terra e o céu é como um fole de forja:
mesmo vazio, ele não perde sua força.
basta movê-lo e volta a exalar.
se muito se fala, exaure-se
mas seu interior protetor o mantém livre"

28.
A música é um dos modos que temos de modular nossa respiração, assim como a pintura também éum modo de modular nosso olhar, e também as coisas do mundo em movimento são simples moduladores. Para realizar tal modulação o compositor tem apenas três procedimentos: justapor, sobrepor ou entrelaçar ritmos, objetos sonoros de durações distintas ou semelhantes, para conduzir o ritmo da modulação e é neste sentido que a música é a arte do tempo. A arte de modular o ritmo (o fluxo de expansão e contração). A arte de modular a respiração. Toda uma linha que reúne ciclos de modulação, ciclos de expansão e modulação - como quando se sai e se retorna a um eixo, seja ele um objeto sonoro, seja ele uma nota musical, seja ele um pulso (acelerar e ralentar). Ei o que o compositor precisa dominar: os ciclos de contração e expansão. E os ciclos se formam sempre por objetos simples, como diz o Tao: se muito se fala, exaure-se, perde-se, deixa de exalar o sopro transversal.

29.
Ficamos assim com objetos simples: longo-breve; rugoso-liso; ríspido-suave; modulado-constante, os quais sequenciados compõem ciclos de expansão e contração, de aumento ou diminuição de velocidade, de passagens tranquilas ou cortes abruptos. Talvez como Paul Klee buscou captar em suas Eclusas.

 

notas:
[1] Xie He é muitas vezes grafado Sie Ho, ou Xie Ho. Uma referência importante quanto ao trabalho de Xie Ho foi realizado por Victor H. Mair, publicado por Zong-qi (Cai, Zong-Qi (org). Chinese Aesthetic, Univ. of Havai Press. 2004). [volta]
[2] Não há precisão quanto ao período em que Lao-Tseu teria vivido, talvez no séc.VII a.C ou mesmo no séc. IV, como contemporâneo de Kung-Fu-Tse (551a.C - 479 a.C). [volta]
[3] Klee, Paul. La Pensée Créatrice.[1921] Paris: Dessain et Tolra. p.76. 1980.[volta]
[4] Segundo Mair (op.cit.), nesta sequência de quatro ideogramas, os dois primeiros representam o foco do cânone.[volta]