fundo

Ritornelo: tempo: música
Silvio Ferraz

[desenho de fundo: dora_ferraz]

 

1.
O ponto que pretendo alcançar nesta leitura é aquele que diz respeito à forma musical. Para falar de forma tomarei por base a definição de Boulez - e Deleuze a partir de Boulez - para espaço e tempo liso ou estriado. A razão é simples, distingue-se de fato de um lado a noção de forma pressuposta ou forma a priori, de outro a forma enquanto poiesis. Uma distinção que não põe de um lado forma a priori  e de outro a forma a posteriori, mas sim distingue a forma enquanto predeterminada e de outro aquela que nasce. Paulo Klee falava de uma mise-en-forme (conformação) a forma que nasce com as forças que a definem.

2.
Em seu Musique Aujourd’hui (Paris: Gallimard, 1963), Boulez propõe a distinção entre dois espaços: o estriado e o liso.

3.
O espaço estriado pressupõe a operação de contar para preencher. Ou seja, tenho uma forma, contabilizo a forma, e então me ponho a preencher esta forma com elementos que tornem a forma clara. Tornar a forma clara, máxima do estruturalismo musical. Deste modo todo elemento incorporado à forma virá como marcador desta forma, ganhando significado sempre relacionado à forma. É isto que algumas leituras musicais compreendem por significado musical: a forma, ou a estrutura, é o significado.

4.
O espaço liso é aquele que subentende a operação de preencher sem contar. Ou seja, o que se passa é sempre uma mise-en-forme, uma poiesis da forma. Neste jogo da poiesis da forma temos que a forma nasce da repetição, da repetição da própria poiesis, repetição do ato de invenção – conforme a definição de Gabriel Tarde em Les lois de l’imitation (Paris: LIbrairie Félix Alcan,1921), pensamento de onde Deleuze formulará, em seu Différence et Repetition (Paris: Minuit, 1968) sua “repetição do diferente”: repetir o diferente correspondendo assim a repetir a invenção.

5.
Em Boulez tanto liso quanto estriado pertencem ao que chamarei de domínio extensivo. Domínio mensurável, mesmo que por processos estocásticos, por probabilidades. No domínio extensivo, falamos de um espaço, ou de um tempo, ora como vivido ora abstrato. Este é aquele domínio no qual impera um pensamento que se norteia pela percepção e tem, por consequência, espaço e tempo mensuráveis em escalas.

6.
Boulez lembra ainda que liso e estriado não são absolutos, mas um converte-se facilmente no outro. Um espaço infinitamente estriado constitui-se em espaço liso. Um espaço liso de longa permanência é uma estria face a um outro espaço que lhe seja sucessivo.

7.
Retomando os escritos de Boulez, sobretudo aqueles que tem relevância nos escritos de Deleuze, vale destacar que tanto liso como estriado compreendem-se tanto em um domínio homogêneo quanto em domínio não homogêneo. Em cada um desses domínios o comportamento de cada um dos espaços-tempos será diverso. Espaço-tempo estriado curvo e reto, espaço-tempo liso estatístico, progressivo ou estático.

8.
Não é a estria de um pulso ou sua ausência que determinará se um espaço-tempo é liso ou estriado. Também porque estamos falando de espaço-tempo, ou seja a música compreende dois lugares: o lugar da partitura (espacial) e o lugar da performance (temporal). Vale deixar claro que para Boulez espaço é aquele que existe na partitura, entre uma nota e outra, entre um ataque e seu subsequente, e que as proporções diversas, as estrias diversas que permitem jogos de reconhecimento dizem respeito àquilo que se vê na partitura bem como outras formas de estria como os pontos de apoio, as referências históricas etc. dizem respeito ao que se escuta.

9.
Não se trata assim de opor o liso ao estriado mas de imaginar a constituição de dois blocos em interação: estriado e liso extensivos / estriado e liso intensivo. O que sobressai na leitura de Deleuze é o fato de tanto estriado quanto liso constituem lugares de atualização de virtuais, ponto este que está justamente na quebra de um espaço em outro, no ponto de corte e contato entre dois espaços (ponto de fuga, conforme a teoria da catástrofe que Deleuze toma de empréstimo de René Thom).

10.
Boulez de certo modo apresenta elementos suficientes para pensar-se de modo empírico extensivo os pontos em que se dão tais quebras de direção, os cortes.O salto dado por Deleuze será aquele em que para cada ponto de um espaço-tempo extensivo corresponderá um ponto intensivo, conforme propõe junto a Félix Guattari em Mille Plateaux (Paris: Minuit, 1980).

11.
Desde a escrita de Rhizome em 1976 e posteriormente em “O liso e o estriado”, platô 14 de Mille Plateaux (MP), Deleuze e Guattari se valem decisivamente dos conceitos de Boulez e de seu desdobramento ao cruzar o liso e o estriado em distintos domínios do conhecimento: na tecelagem, na navegação, na matemática e na música. Estratégias diversas para a realização do salto de um pensamento extensivo do espaço-tempo para um intensivo.

12.
Deleuze e Guattari nos dizem ainda que no espaço-tempo estriado a linha vai de um ponto predefinido a outro, no espaço liso a linha passa por pontos. Espaço-tempo cardinal tanto no primeiro quanto no segundo caso.

13.
O perigo todo está em pensar o liso como sendo específico do intensivo, quando de fato o que Deleuze e Guattari pontuam é a passagem entre liso e estriado, o espaço de conversão, a linha transversal que corta o liso e o estriado extensivos de modo a dar nascimento aos pontos de liso intensivos.

14.
O salto de Deleuze e Guattari está em pensar estriado ou liso enquanto espaço vetorial. Se pensamos o extensivo enquanto pontos cardinais, pontos que delimitam a dimensão de uma reta, que delimitam uma trajetória, temos para o intensivo a linha, vetor sem direção que passa por pontos. Não vamos de um ponto a outro mas passamos por ponto. O raciocínio por compartimentos, “contar para ocupar”, contraposto ao distributivo, “ocupar sem contar”.

15.
Passar de um ponto a outro, seja por transição contínua seja pelo corte abrupto. Tornar lisa a forma que nasce das estrias, dos cortes – pois seja transição seja salto, estamos falando de níveis distintos de corte.  

16.
O corte é o ponto em que nasce a forma, a forma nasce com os cortes que são pontos em uma trajetória e não pontos de chegada ou de saída. Esta é a diferença entre antes e depois de ler o ritornelo, antes ou depois de ler Deleuze. A noção de forma retorna não mais enquanto fôrma a ser preenchida, mas filigrana de pontos, de cortes e mudanças de direção.

17.
Se olharmos bem o que acontece em Bach, em Vivaldi, em Mozart, Debussy ou Berio veremos que sob a forma estriada, encontram-se espaço e tempo lisos por meio do corte, por meio da mudança de direção que fazem de toda escuta um balanço entre o medido e o livre, entre o definível e o estatístico.

18.
Este salto é aquele que vai de um espaço mensurável e divisível ao não divisível. O espaço musical não é divisível, a metade de uma oitava não é mais oitava e sim outro intervalo, com outros afetos, com outras implicações para quem ouve. Ou seja, o próprio espaço musical é liso e indistinto.

19.
Sendo o espaço musical um espaço liso, um dos grandes jogos de invenção é o de estriá-lo. Pois até mesmo a divisão de tempos sempre dá um salto de natureza. O espaço musical não se deixa dividir sem mudar de natureza, para retomarmos aqui a proposição de Deleuze que atravessa de Différence et Repetition (capítulo V) a Mille Plateaux (Platô 14, p. 603).

20.
O que seria mudar de natureza em música? A primeira imagem que me vem é aquela que também é própria do espaço musical: o som é tanto tátil, quanto proprioceptivo e visual. Ou seja, o som é textura (é liso, rugoso, áspero), é peso (é denso, pesado, leve, flutuante, profundo) e é delineável (forma desenhos no espaço, ganha tonalidades, coloridos, brilho).

21.
A questão toda ao se pensar o tempo via Deleuze e Guattari, e via Boulez, como já disse não está em limitar-se ao tempo liso, sobretudo tendo em vista que o liso pode ser tanto extensivo quanto intensivo. A diferença estaria em que no plano extensivo o liso sempre ganha estrias, estamos sempre em uma dinâmica de fluxo e corte de fluxo. Enquanto no plano intensivo o liso e o estriado confundem-se no corte. O corte não é nada mais do que aquilo que o próprio Deleuze já definia como a dobra em seu livro Le Pli (Paris: Minuit, 1988).

22.
O corte é o salto em que um vetor muda de direção. O ponto de mudança de natureza. Ou seja, a questão toda do tempo não está na linha do tempo enquanto antes e depois, enquanto tempo que anda mais rápido ou mais lento, enquanto tempo com ou sem estrias, com ou sem medida. Não se deve confundir esta noção de tempo extensivo com aquela do tempo intensivo que Deleuze e Guattari propõem. No salto dado por eles, estriado não quer dizer apenas pulsado ou ritmado, nem liso diz respeito a som contínuo ou ao grande pedal. As dobras do tempo intensivo não se dão mais na extensão do tempo enquanto linha mas nos nódulos que embaralham uma, duas ou mais linhas.

23.
As dobras do tempo e do espaço estão no conjunto imagem que nasce do tempo extensivo abrindo o ponto de salto para um tempo intensivo. Cada pequeno ponto é a porta para uma duração sem medida, a possibilidade de mudança de direção de um vetor. É neste sentido que Zourabichvili nos lembra que “O tempo [para Deleuze] é relação entre dimensões heterogêneas (Zourabichvili, “Deleuze une philosophie de l’événement”, in: La philosophie de Gilles Deleuze  p. 78), ou ainda que “O tempo, pura mudança, é a passagem de uma dimensão a outra (devir)” (p.77).

24.
A linha (vetor de força) que encontra pontos (nódulos e bifurcações) nos quais se dão a dobra (quebra ou corte). É justamente nesta dobra que se dá o salto potencial, a mudança de dimensão. Eis uma concepção do tempo a partir de Deleuze, um tempo pluridimensional, intensivo (cf. Zourabichvili, p. 77).

25.
É na dobra que se dá o salto potencial, a mudança de dimensão.

26.
De tais saltos de dimensão intensivos não se diz que sejam um maior ou menor um face ao outro, simplesmente são saltos para dimensões diferentes.

27.
Cada ponto, nódulo, é o lugar de atualização de conexões virtuais que se escondem no tempo extensivo de existência do objeto musical, sonoro ou simplesmente da ideia de escuta. Escutar é justamente realizar saltos do campo extensivo para o intensivo, do liso e estriado extensivo ao liso e estriado intensivo. Pode-se ainda dizer que tais mudanças de natureza correspondem às mudanças no campo háptico da percepção; a escuta como um mapa de saltos entre as dimensões visuais, táteis, sonoras, proprioceptivas envolvidas na percepção.

28.
Na não linearidade da escuta um fragmento inexpressivo de objeto pode tornar-se mais pregnante que um elemento formado : um simples ataque de timbre diferente pode chamar mais a atenção do que todo um tema elaborado.

29.
Para imaginar esta relação entre o extensivo e o intensivo proponho aqui uma pequena representação. Dois eixos paralelos, em um corre a série do tempo cronológico, no outro a série do tempo vivido. Entre os dois eixos diagonais que cruzam cronos e o vivido, diagonais intensivas. Imagino então que não são apenas dois eixos e também que não há apenas um eixo medido, subdividido. Pode haver eixos extensivos, dirigidos, com aumento ou diminuição de intervalos a passos complexos mas regulares. São assim muitos eixos paralelos.

30.
A partir de um desenho simples de linhas, de fragmentos de linhas entrelaçados, de nós diversos, de linhas que correm quase paralelas, de fiapos que se perdem e não se ligam a nada. Imaginemos então que as linhas correm sobre um eixo horizontal do tempo enquanto presente-passado-futuro e que em cada nó (ponto de interseção ou dobra) abre-se um espaço intensivo (linha intensiva vertical). Se a linha simples tem uma espessura, os nós tem espessuras intensivas distintas. O tempo musical é assim a razão entre um tempo cronológico e um tempo intensivo, ou seja uma espessura de tempo.

31.
..............etc

32.
Darei aqui um pequeno salto: de fato estou buscando falar da fórmula do ritornelo tal qual proposta por D&G em Mille Plateaux. Considerando-se os três aspectos do ritornelo (MP), ou mesmo as três sínteses do tempo (DR), e colocando-as sob um mesmo eixo horizontal teríamos a seguinte sequência extensiva: (1) habito/ ética; (2) inscrição na memória (estética/nomeação); (3) autonomização de componentes (poiesis/salto). No que diria respeito ao ritornelo teríamos: (1) a busca de um eixo, o momento direcional; (2) a fundamentação do eixo, a criação das dimensões, o território; (3) o afundamento do eixo, a autonomização das peças, as conexões com o fora, a desterritorialização (Cf. Mille Plateaux, p. 382-384).

33.
Represento simbolicamente os três aspectos por α, β , γ. Cada pequena sequência α >β > γ delimita assim um percurso entre encontrar um eixo, fazer deste eixo seu território e cair em instabilidade ou poiesis (invenção). Ao encadear estes aspectos como momentos, como passo a passo de um jogo de territorialização, posso encontrar entroncamentos. Entroncamentos entre linhas distintas as quais, cada uma, podem estar em momentos distintos:

34.
γ -> α : quando da poiesis nasce um novo momento de fundação de eixos;
γ -> β : quando a poiesis é imediatamente capturada por um território constituído;
γ -> γ : quando da poiesis cai-se em outra poiesis infinitamente sem que se crie um novo chão.

A desterritorialização absoluta ou relativa, a reterritorialização e o buraco negro.

35.
O que vemos na representação topográfica da sequência é que não temos mais apenas a linha horizontal, o prolongamento extensivo da sequência é um jogo cheio de entroncamentos em que cada nódulo tem densidade diferente e sentido diferente, com forças distintas atuando. Vale lembrar que quando Deleuze e Guattari nos falam de densidade ou velocidade, estão pensando em um espaço-tempo intensivo, ou seja naquela linha vertical não mensurável que nasce de um ponto na linha horizontal extensiva.

36.
Os entroncamentos tem dimensões distintas, sendo de fato a manifestação da atualização de conexões virtuais. E se consideramos que os territórios andam em paralelo, que estamos imersos em uma heterogenia com diversas camadas andando em paralelo, cada uma com suas linhas horizontais e nódulos densos, e que tais linhas se cruzam, assim como os nódulos podem se sobrepor...chegamos à imagem do rizoma e seus nódulo distinguindo os simples contrapontos territoriais, as modulações entre territórios, território e poiesis, território e habito, hábitos e hábitos, hábitos e poiesis, poiesis e poiesis, as desterritorializações, as territorializações e as interrupções em buracos negros.

37.
Ou seja, de um quadro simples, pequeno, limitado, finito, de pequenas linhas de territorialização e desterritorialização, chegamos à combinatória imensa do que Deleuze e Guattari chamam de contrapontos territoriais. Estes contrapontos, que não são meras reuniões, mas modulações entre imagens distintas, aumentam a potência deste mapa, de modo que os pontos de origem perdem sua pertinência em meio à trama heterofônica.

38.
Eis aí uma nova imagem da sequência de escuta ou da forma de sequência. Não mais o encadeamento de ideias, ou mesmo o jogo de desdobramento de ideias (por derivação ou reiteração simples), mas a constituição lenta de uma nuvem com nódulos irregulares, com mudanças de velocidades e densidades; velocidades e densidades intensivas: velocidades de conexão e transformação, densidades de conexões e transformações. Espaço em que a forma nasce junto com os entroncamentos e objetos que a constituem.

 

 

Texto base de palestra apresentada no II Colóquio Deleuze-Guattari, Rio de Janeiro, agosto de 2011.

 

 

 

posicione o mouse sobre cada imagem para iluminá-la

 

 

 

 

 

espaços conforme propõe Pierre Boulez em Penser la musique aujoud'hui

espaço estriado reto e estriado curvo

   

espaço liso homogêneo (curvo) e liso heterogêneo (curvo e reto)

 

 

 

 

ilustração de René Thom para sua teoria da catástrofe em que observa o momento de ataque, ou salto: mudança de estado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Linhas em paralelo, fiapos de linhas, e nós embralhados de entrelaçamento

 

 

 

 

 

 

 

 

Colocados em um mesmo gráfico imaginemos que para cada nó para cada cruzamento de linhas, nascessem pequenas manchas, umas mais intensas outras menos, umas maiores outras menores. Fica então assim uma pequena brincadeira de sobrepor ao desenho das linhas um poema de Michaux retirado de seu livro Par des Traits.

 

 

1) espaço extensivo medido; 2) espaço inextensivo ou vivido, medido mas irregular; 3 e 4) diagramas de linhas diagonais intensivas entrecruzando os dois espaços extensivos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sequenciação simples, quase linear de α, β e γ, com pontos de reterritorialização, desterritorialização absoluta e desterritorializações relativas.

 

sequenciação complexa, em modo rizomático, com diversos entroncamentos e linhas paralelas, cada uma pulsando em tempos distintos. Note-se que nunca se estabelece um ou outro movimento apenas, mas que todos correm em paralelo, e que se em um ponto dá-se uma desterritorialização absoluta em outro pode estar se dando uma territorialização ou reterritorialização.