Análise e Percepção Textural :

Peça VII, de 10 Peças para de Gyorgy Ligeti (1)

 

[Ferraz, Silvio - (1990). Análise e Percepção Textural. in: Cadernos de Estudo: Análise Musical, n. 3, pp.68-79. S.Paulo: Atravéz]


Na música da segunda metade do século XX, foi retomado na prática composicional o controle intencional da textura musical ao que a obra de Claude Debussy apareceu como referência fundamental. Dentre os compositores que mais se utilizaram de tal procedimento destaca-se Györgi Ligeti. Para a análise de uma de suas obras, proposta aqui, fêz-se necessário forjar uma metodologia analítica própria a ressaltar as particularidades do discurso textural. Com isso, antecede a análise uma proposta metodológica que procura destacar os parâmetros pertinentes a uma textura musical.


Introdução


A compreensão, o uso e o tratamento textural sempre estiveram ligados à percepção visual e tátil. Para a percepção musical este sentido geralmente não passa de uma transposição sinestésica da percepção(2). Com a incidência cada vez mais forte no uso de procedimentos marcadamente texturais na música pós-serial, remontando ainda a Debussy, fazem-se necessárias ferramentas que tomem tanto a análise quanto a composição textural quantificáveis e qualificáveis, longe das comparações sinestésicas. As definições de texturas como rugosas, granuladas, lisas, se referem à sua superfície, gestalticamente percebida, onde se escondem os jogos de relação estruturante e os princípios dinâmicos que possibilitam passar de uma textura a outra.

Neste ponto colocaremos as seguintes questões: O que e analisável na textura, quais suas componentes? Como analisar a textura a partir dos quatro parâmetros elementares do som - base analítica para. por exemplo, a música serial ou mesmo pré-serial?

Tais questões se colocam porque a textura nunca foi desconhecida dos compositores. É texturalmente que se pode distinguir fases da própria história da música ocidental, da monodia à heterofonia (3). No entanto, em todos os momentos que compiem esta história a textura é tida como uma resultante do trabalho sobre melodias. harmonias, complexos rítmicos. Sempre conhecida dos compositores, a textura sonora e musical só se tornou relevante como fundamento composicional através de Debussy (4), uma iniciativa aparentemente isolada que só foi considerada importante pelas correntes historicistas do pensamento musical em 1960, quando foi retomada por integrantes da Escola de Darmstadt.

Nos anos que seguem a Debussy a primazia da altura sobre os outros parâmetros permaneceu, permeando, inclusive, as diversas teorias atonais.
A compreensão dos fenômenos massivos, do uso constante de massas sonoras, é que veio dar a devida importância estruturante à textura musical. Esta compreensão está ligada à retomada, já em meados do século XX, de elementos da psicologia da Gestalt, ou psicologia da Forma (5) do final do século XIX aplicados à prática composicional. Na música esta retornada se deu justamente a partir da obra “Jeux” de Debussy onde a composição de massas sonoras apelam ainda à percepção e compreensão sinestésica em que fluxos ascendentes de alturas, blocos rítmicos, trêmulos, são no mais das vezes traduções sonoras de movimentos conhecidos e reconhecíveis como percepção visual e tátil tais quais o vai e vem de uma bola de tênis, o movimento dos jogadores; descritos não mais por símbolos (convenções) harmônicos, melódicos ou rítmicos, mas por gestos sinestesicamente transcritos.

A retomada de Debussy já na metade do século XX por K. Stockhausen (6) e posteriormente por G. Ligeti, descartou no entanto o aspecto iconográfico de seu tratamento textural. Com eles os resultados texturais deixaram de ser perseguidos para descrever gestos extra-musicais, mas para estruturar o próprio discurso intra-musical, enfatizando transformações sonoras, desenvolvimentos do complexo sonoro, enfatizando a própria textura da peça. Isto é claro na obra de Stockhausen onde a textura tomou a função de distinguir ou ligar eventos, criar estratos sonoros distintos, relacionando micro e macro elementos de uma composição musical. (7)

Ligeti retoma a textura de um ponto de vista bastante diferente daquele adotado por Stockhausen. Em suas obras a textura não é trabalhada funcionalmente e sim como sendo a temática principal da obra. Nelas Ligeti trabalha a textura tendo em conta a não permeabilidade de certos complexos sonoros às pequenas variações dos quatro parâmetros elementares do som (ou simplesmente parâmetros das notas musicais) Tais alterações, isoladas, não chegam a alterar o resultado textural, pois tais complexos sonoros séo equiparáveis a blocos estatísticos, onde a irregularidade e a complexidade emascaram os formantes singulares em detrimento da textura, dentro de limites bem determinados (como exemplo, ouça-se a vibração irregular da distribuição de parciais e transientes no som de uma consoante (8)).

Ligeti formula tal procedimento composicional partindo da própria estrutura serial para negá-la. A complexidade estrutural de certas obras do serialismo tendiam a criar uma resultante similar à do ruído estatístico. Com isso, a pertinência dos parâmetros elementares para a série se perdiam em meio ao emaranhado de acontecimentos que, mantidos numa estruturação seqüencial sempre homogênea - já que definida por uma única série, evitando-se ainda qualquer traço reiterativo -, resultavam constantemente em texturas estacionárias, sempre idênticas pois eram impermeáveis às variações de parâmetros sugeridas pela serie. Tal questão. também abordada por Stockhausen, teve como conseqüência o tratamento massivo da própria estrutura serial. Impôs-se com isto uma pré-determinação no plano temporal da série, tratada como acontecimento. Porém, como formula Ligeti, "posto que tais procedimentos destroem totalmente a predeterminação original dos valores de tempo - através de medidas de controle super ordenadas - vale
perguntar-se se não devemos abrir mão das próprias relações de duração elementares e trabalhar diretamente com o desenvolvimento temporal da forma (9) [...], e no lugar de séries fixas, trabalharmos com a distribuição desigual dos elementos, com bases estatísticas". (10)

Assim o tratamento recai sobre a textura em si, os parâmetros elementares ficando submissos à resultante timbrística e textural desejada: a textura não mais como ícone, símbolo ou função artículatória de séries, mas como temática principal.
 

Metodologia analítica


Por textura sonora, ou musical, compreende-se os diversos aspectos da resultante vertical de uma estrutura musical: a condução interna de seus elementos sonoros, sua configuração externa, compatível com o sistema e procedimentos típicos ao qual este se insere - polifônico, monódico, harmônico, serial, pontilhista, estatístico. Ela
é a sensação gestáltica produzida pela configuração e pelo dinamismo dos elementos sonoros presentes num determinado fluxo sonoro (11).

Para o uso composicional de processos texturais, de modo não apenas descritivo, é importante notar a sua dependência ao dinamismo de Seus elementos internos co grau de permeabilidade às mudanças destes elementos como pontos básicos para se forjar um instrumental analítico e composicional.

Para uma análise com tal preocupação é necessário determinar quais os pontos elementares da formação textural, quais os seus parâmetros principais. Esta análise da formação textural não invalida, no entanto, a análise textural comparativa às sensações táteis ou visuais. A descrição sinestésica tem sua importância analítica embora não penetre a composição das texturas, não desvendando os seus mecanismos dinâmicos.
 

Parâmetros texturais


Vista a não permeabilidade dos parâmetros elementares do som. cabe aqui determinar quais os parâmetros permeáveis numa escuta textural, parâmetros decorrentes daqueles elementares que se constituíram em unidades mínimas do todo textural(12).

Na análise textural se destacam dois grupos de parâmetros: os parâmetros elementares do som (ou da nota) e os parâmetros complexos. (13) A permeabilidade e variabilidade textural destes parâmetros está baseada na maior ou menor estabilidade do todo textural frente às aiterações do parâmetro em questão. Distingue-se assim: aqueles parâmetros que, se alterados -por menor que seja esta alteração- alteram fatalmente a resultante textural e aqueles que depedem do grau de alteração que sofrem e do tipo de textura em que se inserem para que interfiram ou não no resultado textural. O primeiro grupo será tratado aqui por parâmetro permeável, ou seja, aquele ao qual a textura é sempre permeável pois suas alteraçõs são sempre percebidas na gestalt (na forma ou configuração) da resultante sonora. Eles praticamente podem ser compreendidos como sendo a unidade mínima paramétrica na percepção textural. O segundo grupo é formado por aqueles parâmetros que dependem da relação de permeabilidade, do grau de suas alteraçõs e da formação textural para que se destaquem e possam transformar uma textura, os quais serão chamados por parâmetros de permeabilidade variável.

O grau de permeabilidade de um parâmetro numa textura está diretamente ligado às dimensões do parâmetro dentro do complexo sonoro. A textura é permeável àqueles parâmetros que compreendam em si diversas variáveis paramétricas, o que vale dizer que, ao ser alterado alteram-se também as mais diversas relações entre seus parâmetros internos.

Existe uma relação direta entre a permeabilidade de uma textura e as dimensões paramétricas das alterações dentro da textura especificada. Assim, por exemplo, uma textura monódica contante é permeável a pequenas variações de altura, ou mesmo de tímbre, numa densidade horizontal correspondente a uma unidade mínima que defina esta textura. Já, num complexo polifônico de textura heterogênea - contraponto de acontecimentos de texturas diferentes - a alateração de uma simples relação de alturas em uma das vozes não interfere necessariamente no todo. Caberia, neste caso, uma alteração também massiva, ou seja, uma alteração que modificasse sensivelmente uma unidade mínima - seja vertical, seja horizontal - da textura original.

De modo específico distinguem-se dois parâmetros cmplexos, permeáveis à textura: a densidade, que envolve também o número de eventos ou de estratos sonoros; e a superfície, ou forma no sentido da Gestalt, subentendendo também o sub-parâmetro de encadeamento.
 

1. Densidade e número de eventos (estratos sonoros)
 

A densidade é o parâmetro referente à maior ou menor presença de elementos formantes numa textura. Para estruturas polifônicas ou homofônicas suas medidas correspondem ao acúmulo vertical de sons ou de eventos e, para estruturas monódicas, ela compreende o acúmulo horizontal - envolvendo indiretamente o parâmetro elementar de duração do som.

Nos casos polifônicos ou homofônicos, a densidade pode estar tanto relacionada aos sons presentes na textura como também aos eventos nascidos de grupos de sons representativos em destaque na estratificação da textura. Com isto, a alteração da densidade não está necessariamente ligada ao aumento do número de sons numa passagem musical, podendo estar ligada a um aumento do número de eventos, ou estruturas qualificáveis como tal (estratos sonoros), sensivelmete claros à perceperção e permeáveis à estrutura da textura em questão. O parâmetro complexo de número de eventos não só quantifica a alteração da densidade, mas também qualifica o dinamismo interno de um complexo textural, fato que exige que se dê à estratificação um tratamento especial como sub-parâmetro, considerando também o fato de que ele é largamente utilizado na composição musical (14).
 
 


 

[fig.1] Passagem monódica com aumento de densidade causado pela estratificação em eventos distintos dada as características melódicas encontráveis entre os formantes da textura.

 

Fig. 2 - Aumento no número de eventos em uma passagem homofônica.


 
 

Numa textura homofônica podemos notar a alteração do número de eventos, por exemplo numa passagem em intervalos paralelos constantes em que a alteração da relação intervalar em uma das vozes resulta no adensamento timbrístico do bloco de acordes, apontando um novo event simultâneo ao bloco, mesmo que este evento não venha a ser desenvolvido (15).
 
 

2. Superfície e encadeamento
 

A superfície é o parâmetro de complexos mais intimamente relacionado à configuração do bloco textural. Trata-se de uma resultante da conformidade das vozes externas de uma textura. Nela estião em jogo a distância intervalar e as relações intervalares - do ponto de vista melódico -, tanto no que tange às vozes que envelopam a textura, quanto na sua distribuição interna - quando se trata de uma textura com mais de duas vozes ou estratos simultâneos. Na análise de passagens ou nuances monódicas, a superfície se manifesta como contorno ou, ainda, como perfil.

Dentre os sub-parâmetros associados à superfície está o de encadeamento, ligado também à densidade, qualificando o grau de continuidade e descontinuidade, de diferenciação e repetição, numa textura musical. Como exemplo de sua presença observe-se uma passagem em trinado: alterando-se a distância intervalar de pequenos para grandes intervalos, repetidos ou não, passa-se de um tecido homogêneo e cerrado para um heterogêneo, mais denso e intervalarmente dinâmico. Neste exemplo a alteração no encadeamento gerou a quebra da continuidade do discurso anterior, o que qualifica a alteração, os grandes saltos irregulares, como indícios de eventos distintos.
 
 

 

Fig. 3 - três exemplos de alteração na distância intervalar implicando na sua fragmentação em eventos distintos, dando maior mobilidade ao encadeamento, tendo também por conseqüência o aumento da densidade e a ampliação da superfície.


 

 
 
 

3. Parâmetros de permeabilidade variável
 

Vistos os parâmetros de complexos e seus sub-parâmetros, é interessante notar que eles medem duas dimensoes de um complexo sonoro: com a superfície mede-se os limites e a distribuição interna de seus elementos formantes, e com a densidade o seu volume, a sua profundidade de campo. Eles não encerram, no entanto, as dimenções de um complexo sonoro, deixando espaço para aqueles parâmetros de permeabilidade variável, dos quais se destaca a duração.

Para compreender experimentalmente a permeabilidade dos parâmetros optou-se aqui por formar blocos sonoros singulares, decupáveis, e transformá-los pela alteração global e uniforme de um de seus parâmetros simples. Para compreender a permeabilidade ou não permeabilidade, a alteração dos parâmetors elementares se dará aqui, de modo similar, ou sçja, por exemplo, com a alteração global e uniforme de alturas o bloco todo será elevado ou rebaixado, na é intensidade idem, e assim por diante. Do mesmo modo, re-instrumentações (em que se mantenha o equilíbrio de elementos da texura original) também não alteram a textura musical.

A alteração de altura corresponde à transposição, em que todas as estruturas qualificáveis e quantificáveis de uma texturapermanecem intactas. O mesmo ocorre para a alteração de intensidade. Já, para a duração, a sua alteração global e uniforme, por menor que seja, transforma a textura . Isto pode ser visto, p.exemplo, numa alteração de notas staccatto em notas longa, ou ainda no alargamento de uma passagem prestissimo, o que vem também a alterar totalmente a densidade horizontal da textural.

Com os parâmetros complexos foram vistas as dimensões correspondentes ao movimento, profundidade e presença (“loudness”) da textura; a duração vem completar este quadro, dando-lhe sua dimensão temporal, ao concentrar ou expandir elementos, ao ligar ou desligar seqüências.

A permeabilidade textural aos parâmetros elementares é relativa às dimensões de sua alteração. Para que esta alterração afete a textura ela deve tender a ser massiva (no caso da alteração global e uniforme da duração) e ser estruturalmente sgnificativa como uma unidade mínina da textura. Para que esta permeabilidade se dê ela depende de dois fatores: o número de elementos alterados e o grau, ou modo, de alteração destes elementos (16) com relação a uma unidade mínima da textura. A permeabílidade textural, praticamente restrita aos parâmetros de complexos sonoros, impõe que as alterações de parâmetros elementares os torne parâmetros de complexos, massivos. Esta alteração massiva não implica numa elevação de todas as notas, numa transposição. Implica sim numa alteração das relações intervalares e estruturais a ponto de se tornar uma alteração de parâmetro de complexos. O que, como foi viso, não se dá com a duração, que altera fatalmente o todo textural, exceto se a alteração de duração for aplicada a um só elemento, por exemplo, dentro de uma grande massa sonora. A alteração não massiva da duração a colocaria como um parâmmetro de permeabilidade variável num complexo textural. Assim, para que se torne permeável pela textura a alteração de alturas, intensidade e timbre, deve afetar a densidade, o número de eventos ou a superficie.
 
 

Aplicação analítica


Tendo por referência os parâmetros texturais definidos acima, fazer uma análise textural não significa simplesmente localizar tais parâmetros e delinear suas qualidades. Tais parâmetros servem antes para que se penetre o dinamismo textural da obra. No intuito de demonstrar a aplicação analítica escolhemos aqui a Peça VII de “Dez Peças para Quinteto de Sopros” de G.Ligeti(17), uma peça em que há uma pouca permeabilidade aos parâmetros elementares na percepção de uma dada textura, que aqui é progressivamente móvel.

Uma análise textural é antes de mais nada uma análise da resultante sonora, portanto uma análise engendrada a partir do que é sensívelmente perceptível na obra. A análise pura e simples da partitura, sem compreender auditivamente o complexo textural corre o risco de ser praticamente infrutífera e falseada.
 

Análise da “Peça VII”
 

Para a análise desta peça tomou-se como temática fundamental a tansformação de duas noções elementares e tradicionais da música e da percepção: o acorde e a melodia re-significados em complexos próprios a um discurso textural. Este discurso fica claro pela direcionalidade das transformações e pelo modo como as partes se encadeam:
nele, acorde e melodia são transformados em noções de agrupamento vertical e encadeamento horizontal, tendo o silêncio como agenciador destas transformações.

Para a reciclagem deste material tradicional, que se dá claramente na não permeabilidade da resultante textural aos parâmetros elementares do som, alguns procedimentos se fazem evidentes:

1) O agrupamento vertical é realizado com o uso de alturas próximas (cluster) tocadas por ataques curtos (na partitura indicado como “short and very hard”) (18), isolados por longas pausas. Resultam assim em pontos sonoros que se assemelham à textura estatística do ruido, dado o choque de fundamentais e de parciais. Neste cluster as notas não são reforçadas harmonicamente, eliminando as particularidades e individualidades pertinentes a uma escuta “harmônica” dos agrupamentos. Estruturalmente, o desenvolvimento da peça se baseia na expanção de superfície destes pontos que ao longo da peça abrem o caminho para as tansformaçõs texturais, lembrando uma passagem do ponto (do cluster), à linha (melodia), ao plano (polifonia).

2) A re-significação no plano horizontal dá-se de duas maneiras. Primeiro, tem-se que a percepção melódica e desviada para uma só nota, ressaltando seu timbre, sua superficie e densidade particulares. A escuta de um encadeamento melódico se perde na longa duração de cada apesentação desta nota, isolada ou em bloco horizontal (cf. compassos: 13-19, 35-37). O segundo aspecto desta re-significação do encadeamento horizontal fica a carjo do agrupamento polifônico de melodias irregulares (19). Sendo que o cruzamento constante de tais melodias dificulta que a escuta se norteie pelos perfís individuais de cada melodia, voltando a escuta para a superfície movel de densidade variável.

Vistos o agrupamento vertical e o horizontal, resta notar a presença marcante e funcional do silencio nesta peça. Por um lado ele favorece a compreenção textural, como no isolamento dos blocos verticais, por outro ele é parte integrante da textura geral da peça: uma textura vazada por grandes “manchas” de silêncio. O silêncio assim realça também a ausência de dinamismo melódico ou harmônico, pois isola os elementos não deixando que se constitua um continuum sonoro necessário para que tal dinamismo seja caracterizado. O discurso passa a ser então aquele das texturas singulares, apresentadas isoladamente na ordem de suas transformações. Formam-se assim longas pausas propícias para que o ouvinte interelacione os formantes da peça e comprenda o seu discurso textural.

O esquema formal da peça é a própria textura: uma textura em transformação. Ele se molda no decorrer da peça(20) com o entrecruzamento de materiais de texturas diversas: clusters curtos, notas longas, melodias irregulares sobrepostas - o ponto a linha e o plano. A peça é assim a transformação, seja horizontal, seja vertical, do ponto: a passagem de um bloco staccatto à figuração de uma nota longa, e a passagem da nota longa de superfície monódica a uma polifonia melódica.

[fig.4]
 


Fig.4 - Ponto e Passagem do ponto à linha (o ponto; o ponto + a linha); 
Encadeamento de pontos simulando uma linha (partitura e diagrama analítico da condução para cada instrumento)

 

A distinção entre transformação vertical e horizontal da textura chama a atenção para ciclos de tranformação que, de certa maneira , ligam, numa relação de antecedente e conseqüente, o desenvolvimento vertical e o horizontal.

O primeiro ciclo parte do ponto, que se contagia com a duração mais extensa da linha, procurando simular esta linha num encadeamento de pontos [fig4]. Assim, do ruido simulado pelo cluster, passa-se ao cluster reiterado, cujos ataques são compostos de diferentes combincações tímbricas. Este movimento entre os pontos só é percebido graças ao movimento direto, ou mesmo paralelo, entre algumas vozes (clarinete + flauta; fagote + flauta), reforçando a configuração de uma linha de pontos (21) como observamos no exemplo b), da figura 4.

O outro ciclo de transformações é o da linha, contagiada pelo encadeamento de pontos, indo do encadeamento de pontos do compasso 23 [fig. 4 b] ao encadeamento de linhas - configuração melódica dos compassos finais) [fig.5]

Na passagem do ponto à linha outros parâmetros são alterados, como, por exemplo, a ampliação da superfície: do cluster para intervalos mais largos (cps.30-34). Esta ampliação delimita claramente o ciclo de transformação vertical da textura. A superfície se abre para compreender as melodias de saltos intervalares dos seis últimos compassos [fig.6]. Uma passagem do ponto, que se alonga com a linha, ao plano.
 
 

Fig. 5 - Gráfico de perfis individuais de cada uma das melodias do cp.38 ao fim. Nota-se o constante cruzamento de vozes e 
quebras no encadeamento melódico, na busca de uma composição textural, definindo planos.

 

 

Fig. 6 - Amplicação da superfície ao longo da peça.


O que reforça a percepção dos ciclos de transformação é a disposição e o tamanho das pausas que isolam as partes da peça. Observando-se detalhadamente, tem-se que para cada uma das transformações da textura original (“cluster”) a duração do silêncio varia. Quanto maior a transformação maior a duração do silêncio que separa claramente, com cinco grandes pausas (“G.P.”), os dois ciclos de transformação aqui relatados.

Sintetizando, a textura original, o ponto, sofre várias transformações no seu contato com a textura característica da linha, conforme podemos observar no quadro apresentado a seguir:
 
 

 

  Transformação horizontal:

  1. alongammento do ponto:

   a) o ponto mais a linha (cp. 6-8)

   b)a linha (cps.12-19)

  2. alongamento de pontos (cp.23)

  Transformação vertical:

  1. encadeamento e a expansão do ponto (cps.23-34)

  2. encadeamento de linhas:

   a) linha com nova superfície (cps.35-38)

   b) a linha móvel (cps 38-40)

   c) o plano (cps.40-43)

O discurso fica claro pelos seus aspectos texturais expressos pelas alterações lineares de superfície e densidade, esta tanto horizontal (encadeamento) quanto vertical (estratificação de eventos). Assim, é do contato entre tais texturas, da interferência de uma sobre a outra, que ele se constrói de modo direcional, passando de uma textura original densa, compacta e estática, para uma textura densa porêm expandida e móvel.
 
 

Conclusão


Uma avaliação paramétrica da textura serve aqui como um modo de organizar a compreensão daquilo que se visa numa textura, sem se deixar levar por particularidades próprias aos parâmetros elementares do som (altura, duração, intensidade, timbre). Os quatro parâmetros elementares tornam possível pensar a unidade entre as partes do discurso (22), porém, sua pertinência como singularidade para com o desenrolar textural da peça é praticamente inexistente.

No caso desse peça de Ligeti, uma análise textural a partir das retações de alturas poderia no máximo levar à identificação dos formantes texturais, como foi inclusive utilizado na análise ao identificar-se a textura na mobilidade dos acordes no compasso 23. Poderia também realçar os momentos onde a transformação dos parâmetros elementares é extrema como nos compassos 30 e 34, ou ainda no 23, nos quais a alteração das alturas equivale a uma unidade mínima da textura em questão. Mas, mesmo assim, uma análise como esta deixa clara a permeabilidade variável destes parâmetros na textura da peça, como na passagem do cluster alongado por um acorde de meio tom nos compassos 13, 14 e 15, e sua ampliação, texturalmente insignificante, para um bloco de três notas com distâncias de um tom e meio tom respectivamente, do compasso 16 ao 19. Ou, ainda, a própria mobilidade da linha, do compasso 38 ao 40, que, vistos os saltos irregulares das melodias, leva o ouvinte a não se nortear pelo contorno individual de cada melodia, que se perde no cruzamento entre as cinco vozes (cps. 40 a 43), mas a voltar sua atenção para o plano denso dos eventos, para a configuração, a densidade e a mobilidade do todo textural.

Por fim, é interessante notar que a aplicação desta ferramenta analítica não se restringe a peças onde a textura sobressaia funcional ou estruturalmente. Ela pode revelar caminhos outrora velados quando aplicada para a análise de texturas permeáveis aos parâmetros elementares. Dados como estes foram encontrados em análises do "Quarteto de cordas em lá menor, op.132", de Beethoven ou ainda no "Chant des Oiseaux" de Janequin (23). São caminhos que redimensionam uma peça abrindo a possibilidade de redimensionar a própria escuta musical.


Notas


(1) Este artigo é resultado de um projeto de aperfeiçoamente realizado com o estudo da importância da textura sonora na música do século XX, sob a orientação do Prof.Carlos Kater, com bolsa da Fapesp, em 1985.<volta>

(2) Cf Mackay, John. "'The perception of density and stratification in granular sonic textures: an exploratory study", in: Interface. vol.13, n.4. Lisse: Sweets & Zeitlinger B.V., 1984. p. 172 e 184.<volta>

(3) Cf. Webern, Anton. O caminho para a música nova. Trad. bras. Carlos Kater. S.Paulo: Novas Metas, 1984. pp.50-54.<volta>

(4) Cf. Eimert, H.. “Debussy's Jeux”. in: Die Reihe. n.5. Pensylvania: Theodore Presser Comp/Universal Edition, 1961. pp.3-20.<volta>

(5) Cf. Schaeffer. Pierre Traité des Objets Musicaux. Paris: Ed.du Seuil. 1986. pp. 272-273.<volta>

(6) Apenas como referência: tal retomada vem a publico em 1954 numa transmissão radiofônica feita por Stockhausen analisando as obras Jeux e La Mer, de C.Debussy; Cf. Cott, Jonathan. Stockhausen. Conversation with the composer. London: Picador, 1974. p.69.<volta>

(7) Como exemplo ouçam-se as obras Zeitmaße, Gruppen e Mikrophonie de Stockhausen. Ver também análises destas obras em: Harvey J.. The music of Stockhausen. London: Faber&Faber, 1975. pp.49, 69 e 92.<volta>

(8) Cf. Cott, Jonathan, op.cit., p.80.<volta>

(9) Forma aqui aparece com o sentido de gestalt.<volta>

(10) Ligeti G.. "Waldlungen der Musikalishen form", in: Die Reihe,vol.7 (Wien: 1958).<volta>

(11) Quanto à definição de texturas, notamos, em estudos realizados em 1985, a diversidade de definições adotadas por alguns compositores (Stockhausen, Ligeti, Berio, Boulez, Xenakis, Schaeffer, Varèse). Entre eles, o uso determinou a conceituação do termo. Optamos neste estudo por uma definição que indicasse as bases da textura e que apontasse procedimentos analíticos.<volta>
 

(12) Entenda-se a unidade mínima de uma textura como associada à duração e à quantidade de informação que a qualifique sensivelmente. Neste quadro ela deve ocupar um espaço suficiente para que, se for alterada e voltar ao seu esrado original, o período em que esteve transformada seja pecebido e ela se constitua relevante ao discurso musical.<volta>

(13) Os parâmetros texturais constituídos por diversos parâmetros elementares serão denominados aqui por parâmetros complexos.<volta>

(14) Tal textura é empregada na Sequenza VII para oboé de Luciano Berio ( Cf. Ferraz, Silvio. "Diferença e repetição: a polifonia simulada na Sequenza VII para oboé, de L.Berio", in: Cadernos de Estudo: Análise musical, n.1. SPaulo: Atravez,1989, p.65. Ex.II.)<volta>

(15) Note-se este procedimento, reforçado pelo timbre dos instrumentos na peça de G.Ligeti que será analisada mais adiant [fig.5]. Como exemplo, ouçam-se também os primeiros compassos do Prelúdio op.28 n.4, de Chopin.<volta>

(16) Alterações globais e uniformes, alterações individuais, alterações globais e não uniformes, etc..<volta>

(17) Ligeti, G. Zehn Stüke für Blässerquintet . Mainz: B.Schotts Sölne, 1969.<volta>

(18) Indicação para realização sonora das notas curtas indicadas na partitura, entre os compassos 2 e3.<volta>

(19) Cada uma dessas melodias é contituída por grande saltos intervalares irregulares<volta>

(20) Pode-se dizer que o discurso desta peça é decorrente do processo em que as noções de esquema formal e textura se entelaçam. Outro tratamento formal da textura pode ser constatado no Peça n. 6, do mesmo conjunto de peças de Ligeti, onde a textura é utilizada como procedimento funcional para realçar o esquema formal pré-determinado.<volta>

(21) Note-se que neste trecho a textura é permeável às alterações de timbre propostas associadas a uma falsa alterção de alturas. Porém, é uma permeabilidade relativa onde se percebe o movimento timbrístico e não a melodia.<volta>

(22) Este é o caso da predominância de intervalos como segundas, sétimas maiores e menores, e o trítono, como elementos harmônicos uníficadores ao longo da peça.<volta>

(23) As análises foram realizadas como parte do projeto “Textura Sonora na Música do Século XX”, como mencionado na nota 1.<volta>