Um pouco sobre Poema-em-música 1. A idéia nasceu quando ainda estava na pucsp desenvolvendo meu doutorado, e imaginei gravar uma leitura tentando me deixar levar pela sensação de quem lê. Quem lê um livro, um poema, não percebe, mas o mundo em torno muda, muda a hora do dia, muda o cheiro do dia, o barulho das coisas, as pessoas que estão em volta, as cores das coisas. Tudo muda, você começa a ler às 5 a tarde e termina às 8 da noite, tudo mudou em volta e alguém passou por ali pra acender um abajour pra você. Henri Bergson em Essai sur les donnés imédiates de la conscience narra este jogo que ele chama de sensação. E a idéia composicional que veio daí foi justamente a de tentar encontrar estas matizes de luz, cheiro, cor, textura, no som. Pensava então em uma gravação de leituras de poemas em que registrasse sempre exageradamente os barulhos de respiração, de virar de página, de gente entrando e saindo, de barulhos do cotidiano. Realizei então Conferência para conjunto instrumental e fita pré-gravada, na qual estava registrada e transformada passagens de uma palestra de Gilles Deleuze (qu´est-ce-que l´act de création? ). A peça foi realizada mas o projeto de leitura mesmo acabou sendo abandonado, faltavam os poemas e alguém para lê-los. Atores empolam a voz, e sempre inserem um tanto de teatro no que lêem, mesmo os mais contemporâneos. Cantores também, falseiam a leitura, o que é próprio do ato de cantar, das modulações vocais da melodia. Foi então que resolvi tentar com um poeta, com o próprio autor, mas tendo este autor não mais como autor e sim como leitor, ou melhor, como aquele que diz o poema. Precisava não de alguém que lesse mas que dissesse o poema - tomo emprestado este termo empregado pelo compositor Georges Aperghis em suas Machinations, o que ele chama de “disseuses”. 2. Mas como as coisas não são feitas à sós, assim que encontrei um poeta e começamos a trabalhar este encontro acabou trazendo outras coisas para a idéia geral. E no caso deste encontro específico com a poeta Annita Costa Malufe, a principal idéia que ela trouxe para a leitura foi a de encontrar aquela espécie de vazio silencioso da voz de quem está lendo em um canto da casa, alguma coisa que se cruzasse com a voz de todo dia. 3. Parecia fácil, uma não atriz, não cantora, leria com mais facilidade. Qual nada. Foram necessários ensaios e ensaios para trabalhar uma voz que não module, que não entoe, voz não dramática, e depois, lentamente ir reintroduzindo estes elementos naquilo que eles têm de mais molecular: suas velocidades, seus ruídos, suas modulações - ler mais rápido ou mais lento (distinguindo bem os extremos); ler sussurrando ou normal (enfatizando ésses, érres, éles); ler mais agudo ou mais grave. Estas quatro formas principais foram então simplesmente permutadas (tal qual as notas em Linha Torta) e recombinadas, criando assim diversas seqüência de poemas, ora ou outra intercalados ou prolongados por inserções de instrumentos. Foram diversas as versões: voz e eletrônica, voz solo, voz e sons pré-gravados, voz e instrumento de sopro, voz e piano. 4. Esta versão, que intitulamos de Segundas distâncias, ela é realizada com piano e é a última versão a que chegamos até agora. O piano foi inserido apenas depois de compreender como inserir o piano sem que ele funcionasse como fundo musical da leitura (relação bastante clássica nas leituras de poemas, até mesmo entre compositores das vangüardas), ou como acompanhamento de uma melodia inexistente. O interesse foi fazer do piano uma espécie de prolongação modulada da voz e das sua matizes. A primeira versão com piano foi apresentada no “II encuentro de compositores de Chile” em julho de 2006. 5. Talvez seja interessante notar que tanto o instrumento acoplado ao poema dito, quanto a eletrônica que amplia este poema, nenhum dos dois tem caráter de ilustração dramática do poema. Não é necessário ilustrar o que o poema diz, ele já diz. E, se acredito que ele diz bem, seria muita pretensão querer dizer mais ainda: corre-se sempre o risco de ser um a-mais desnecessário, daí a simplicidade das canções populares, ou mesmo das canções escritas por alguns compositores da música do séc.XX e XXI, citaria aqui a simplicidade do O King de Luciano Berio. Lembro aqui o texto “le grain de la voix” de Barthes, publicado em uma das Musique em Jeux, e sua referência ao cantor burguês afetado, que não confiando nos afetos do texto acaba por valer-se de mais e mais trejeitos vocais e faciais para tentar exprimir aquilo que sua alma sente. 6. Desta forma, a eletrônica empregada para trabalhar a voz é bastante simples: pequenos bancos de filtros, sistemas diversos de prolongar ou reiterar palavras ou pedaços de palavras. E o piano também é bastante simples: um pequeno móbile de três notas, que retoma as freqüências mais presentes na reverberação da voz, e posteriormente opera como ressonância da voz. Nesta versão dos poemas introduzimos dois intermezzi, um para piano solo e outro para voz sussurrada resgatada pelas transformações ao computador. Simples também é a concepção da forma da peça. Desde a primeira apresentação em que entremeamos instrumentos com poemas me concentrei em sempre desenhar um arco: da maior para a menor presença da eletrônica. Seja nos poema-em-música seja em concertos mesmo, sempre tenho mantido este arco, primeiro concebido de modo linear e posteriormente desfeito em alguns pontos para quebrar a expectativa. Assim resumiria a forma a seguinte seqüência: poema+muito processamento eletrônico da voz poema+piano+processamento da voz piano+ processamento do piano poema+piano+pouco processamento da voz poema+piano poema+pouco processamento só poema Outros modos de combinar estes elementos podem ser estabelecidos, como colocar ao final algum momento em que todas as possibilidades se estabelecem em grande velocidade de alternância, ou mesmo momentos de longos silêncios. Dependendo do número de poemas, dos aplicativos de transformação de áudio que estiver desenhando na época da performance, do instrumento disponível (pois nem sempre há a disponibilidade de piano, com o que já houveram versões com saxofone, com material pré-gravado (no caso o solo de violoncello de Lamento, peça que compus em 2005). Uma questão que está por traz da concepção eletroacústica das peças é aquela que diz respeito aos afetos da tecnologia: como trazer dados afetivos para a tecnologia de áudio empregada nas músicas? A resposta até o momento experimentada é a de trazer para a escuta as nuanças da leitura, de reforçar alguns traços afetivos como o uso de um aplicativo que realce a ofegância da voz, e mais recentemente começamos a trabalhar com ruídos domésticos acoplados às leituras, como um modo de compor ambientes por de trás da leitura e dos instrumentos de ressonância (são aqui dois instrumentos de ressonância: a eletrônica e o piano). Poderia associar esta idéia de instrumentos de ressonância à técnica estendida, pois a voz é estendida pelos instrumentos, e o piano é estendido pela eletrônica o que faz dele um instrumento diverso do piano tradicional pois os aplicativos desenhados para estas peças torna o instrumento acústico em uma espécie de controlador podendo o instrumentista variar as sonoridades que trabalha diretamente ao piano. |