Composição e Ambiente de composição

Silvio Ferraz




abstract

Since computer comes to aid at the compositional proccess several interfaces were created, either graphic or tradicional interfaces. The tradictional score were transposed on sequencers and even others pre-compositional procceds uses already musical notation. In this paper our intention is to point out the fact that those interfaces are more than a simple transpositions and we can see a lot of musical implications on it, including some changes in the musical thought: mainly the change in the concept of time and comositional unity.

Loking at these relation between composer and technological supports we have a scope of relations going from the composer as a user (where machine is nothing more than an auxiliary support) up to a most complex interactivity which concept of the environment and compositional thought are both changed, and allows also new ways to understand music listening.




Desde que o computador passou a auxiliar no processo composicional diversas interfaces foram realizadas, seja gráfica ou tradicional. A partitura tradicional foi transposta para os sequenciadores e diversos procedimentos pré-composicionais já dispõem atualmente de aplicativos que usam a notação musical tradicional. É claro que mesmo tais "meras transposições" implicaram em mudanças nos modos de composição: podemos ouvir o que acabamos de compor, podemos visualizar rapidamente o que acabamos de calcular, nunca temos a partitura por completa na tela, e assim por diante. Algumas possibilidades de relação entre compositor e ambiente de composição com suporte tecnológico se estabelecem então:

a) situações em que o suporte constitui-se num mero auxílio para acelerar ou facilitar cálculos, projeções, transformações de timbres, montagens, previamente elaboradas pelo compositor em sua mesa de trabalho.

b) situações limitadas em que o suporte é quem determina os processos e procedimentos composicionais... o compositor apenas realiza uma composição já prevista pelo designer daquele suporte.

c) situações em que tanto o design do suporte é utilizado de um modo particular quanto o modo de composição se reconfigura para atuar naquele ambiente.

O que distingo com essas três categorias é o índices de interação, que pode ser passivo ou ativo. Na interação passiva o sujeito não reconhece o interação, embora ela esteja presente. "e o que temos em "a" e em "b": o compositor que simplesmente transpõe para o suporte seu pensamento previamente elaborado sobre o papel, refletindo uma prática decorrente da escritura sobre o papel; e o compositor que trabalha segundo preceitos do suporte, limitando-se às possibilidades já vislumbradas pelo programador. O que distingue ambos os processos é a presença marcante ora do compositor ora do suporte tratando-se ambos os casos de interações passivas.

Quanto à interação ativa, é nesta que observamos resultados de troca constante entre compositor e ambiente. Existe nela um canal aberto de reciprocidade e este canal é reconhecido pelo compositor; ele não só sabe de sua presença como deixa que interfira em seu pensamento composicional. Se na interação passiva tínhamos a história do compositor e a história da música em contraposição a um suporte sem história considerável, ou ainda um suporte com história frente a um compositor sem história, na interação ativa as histórias dos elementos que dela participam são constantemente reconfiguradas derivando numa nova história resultante do fluxo de trocas.

De um modo geral, interações do tipo ativa permitem a transformação radical de conceitos. Interações passivas também implicam em mudanças, porém o que se assiste nesses casos é a uma transformação gradual. Devemos observar que ambientes que mudam lentamente permitem a estabilização de certos comportamentos ó como ocorreu com a música tonal nos sécs. XVIII e XIX, ou com o modalismo dos sécs. XI e XIV. Já, as mudanças abruptas num ambiente determinam a diversificação e proliferação mais difusa de comportamentos. São exemplos destas mudanças mais abruptas, o surgimento da notação musical sobre pauta, que determinou os rumos da polifonia e o fim da primazia da monodia, ou ainda a presença de recursos eletrônicos e mecânicos de gravação e transformação de sons como os que determinaram a música concreta de Schaeffer ou as experiências de Cage em "Imaginary Landscape". Como sabemos, a mudança provocada pelo ambiente, que deixa de ser a partitura para ser a ilha de montagem de audio, impulsionou não só um novo tipo de abordagem musical, como também uma nova compreensão do objeto-musical.(1 ) E não restringimos esta mudança apenas ao âmbito da composição, ela transborda também para a escuta e para a análise musical. (2 )

De fato, o movimento de interação e troca constante, no qual os participantes reconfiguram uns o comportamento dos outros, faz-se presente mesmo que desapercebido. O território estabelecido pela linguagem embutida no suporte tira o compositor de seu território conhecido. Mesmo ao usar aplicativos que aparentemente são meras transposições, como os sequenciadores, o sujeito está frente a um processo de reconfiguração pois ele deve tornar efetivas suas operações. Não se trata de uma simples adaptação, pois o ambiente também é transformado.(3 ) Não só o comportamento do compositor é reconfigurado, mas o próprio ambiente passa a ter uma configuração própria para este sujeito específico: cada aplicativo é "um" na mão de compositores diferentes.

De fato, mesmo que desapercebidamente, as duas histórias (do sujeito e do suporte) se interpenetram e uma série de mudanças é posta em relevo. Com o auxílio do computador são possíveis novas representações do objeto-sonoro, surgem novos espaços não lineares de composição, particularidade do suporte que muitas vezes o compositor procura derrotar. Mas vistas de outro modo as novas representações do som e da estrutura musical em ambiente computacional abrem espaço para reexaminarmos alguns daqueles conceitos que foram de grande importância para a música do passado e que ainda sobrevivem em grande parte da música atual. (4 )

II.

Com a música eletroacústica podemos dizer que o compositor atua como seu próprio intérprete. Ou ainda como um pintor. Ele concebe, e ele mesmo realiza sonoramente sua idéia. Com a presença do computador mediando esta operação, o compositor passa a ter à mão um instrumental ainda mais preciso de transformação e também um retorno mais direto daquilo que cria. Como o pintor que vê a cada momento o que pinta, o compositor agora ouve a cada momento o que cria.

Como um pintor, é o próprio compositor quem prepara suas tintas (seu material sonoro) e as modula compondo sua paleta de cores (seu material musical). E depois, ao modo dos pintores figurativistas, representa suas cores sobre o papel delineando grandes degradés - passagens graduais de um som a outro. A ênfase recai sobre o objeto-sonoro que é prolongado em grandes contínuos que, ao modo dos encadeamentos tonais, segue passo a passo as modulações da tônica (talvez um modo didático de tornar claro o percurso!). É interessante notar que, realmente, tais composições chamam a atenção para o objeto e para sua transformação, mas sublimam outros aspectos do fato musical - sua referencialidade, seu aspecto figural -, entregando-se a um único e poderoso gesto que desgasta lentamente a fórmula "ligetiana" para torná-la em mero "New Choralism".(5 )

De fato, nota-se que mesmo frente a novos ambientes de composição o nível de relação ainda obedece aos padrões da música tradicional. Mesmo recortando amostras de som, esta operação ainda é regida pela linearidade de um tempo sucessivo, pela norma da causalidade; mesmo dando grande atenção ao fato sonoro este ainda é justificado pelo modo como se insere no desenvolvimento de eventos musicais. E este é o espaço do artesanato sonoro. Não se trata de uma falta de experimentação, mas de uma experimentação que é restrita ao compositor e seu círculo. Ela não é mais compartilhada com o público. O que o compositor compartilha são aqueles resultados satisfatórios, pois podendo ouvir seus resultados a cada momento, ele deixa com que as sombras do senso comum e do bom gosto venham insidiosamente se fazer presentes.(6 ) A crise da experimentação, notada por Carl Dahlhaus, aparece aqui de um modo bastante particular. Não falta experimentação pois ela existe, mas não é compartilhada; ela existe e tem que sobreviver ao senso de bom gosto. É então que falamos da presença de um "New Viortuosism": o compositor devém no artesão que domina seus sons, e que, conhecedor do "bom gosto coletivo", opera dentro dos limites da simplicidade - mesmo que disfarçada por estruturas encalacradas.

O que quero notar aqui é a permanência de diversos conceitos da música tradicional na atual música eletroacústica, sobretudo os de tempo causal e unidade formal. Mesmo diante de novas tecnologias, mesmo após quase um século de transformações nas representações que vão do átomo ao tempo, mesmo após tanto esforço humano, linearidade, causalidade, unidade, integridade, organicidade, permanecem sendo os lemas intocáveis da valoração estética, condições que distinguem a "boa" da "má" música, como apresenta Jean Molino em "Du plaisir au jugement: les problemes de l'évaluation".(7 )

São padrões que têm por princípio um tempo linear, ou cíclico, e refletem a primazia da síntese de elementos homogêneos. Lembram de fato as observações de Kant na Crítica da razão pura, dizendo o quanto é necessária a homogeneidade das micro-percepções para síntese do universo das percepções devenha conhecimento.(8 ) No terreno da composição musical vemos este mesmo pensamento quando destinamos grande parte do processo composicional a garantia de um princípio unificador fazendo derivar todos os elementos de uma música a partir de um só ponto de partida, como se isto justificasse a obra.

Se frente aos modos tradicionais de composição é difícil pensar numa música que não disponha de um elementos unificador, não é difícil pensarmos ou ouvirmos esta possibilidade ao compor com auxílio de um sequenciador digital de audio. Abrindo mão da idéia de lógica interna e optando pela coerência, um passo já vem sendo dado pela música espectral, indo além dos limites da unidade formal e estrutural.(9 ) Porém, podemos ir além ainda mais uma vez (ao menos por enquanto), deixando a coerência em nome da ressonância de um elemento no outro, abrindo mão da continuidade e integrando disparates, resgatando os passos de Varèse em Integrales e Poème Electronique.(10 ) E, com o auxílio do computador podemos operar velocidades as mais variáveis, articular elementos disparatados em grande velocidade sem que esta operação implique em virtuosismo instrumental, como acontece na música instrumental.

Podemos pensar então na justaposição de disparates, o que promoveria uma escuta localizada, ou como observa Ferneyhough em "Tactility of time",(11 ) uma escuta das diferenças entre os eventos, voltando-a para cada evento, para sua constituição e suas diferenças internas.

Pois bem, uma escuta das diferenças, uma escuta de cada som, de cada detalhe, como sendo um dado singular põe de lado a presença ou não de um elemento unificador. Não é necessário buscar um elementos unificador, pois ele não tem papel algum nesta escuta localizada. Pelo contrário, sua presença impediria uma escuta localizada, uma escuta de singularidades. A lógica aqui é simples, se estamos voltados para um jogo de diferenças fica difícil notar o jogo de semelhanças e analogia exigido por um elemento unificador. Numa escuta local os fatores de direcionalidade, de unidade e de função deixam de ser relevantes, passando a relevância aos índices que proporcionam a escuta das singularidades.

Com a possibilidade de dispor elementos disparatados, de permutá-los em velocidades variadas e de trabalhar diretamente com a heterogeneidade do som, a música eletroacústica, realizada com o auxílio de computador, torna não só viável, mas simples, abrir mão da primazia deste princípio fundamental e unidade formal, elementar e estrutural, que permeia ainda uma certa "escolástica contemporânea". Vista de outro modo a unidade passaria a ser determinada apenas pela presença de um evento lado a lado ou sobreposto a outro. Não estaríamos mais lidando com a representação de uma unidade mas com uma unidade que corresponderia às noções de concomitância, ressonância, emascaramento, transparência, fissão e fusão.



III.

Ao ser enfatizada uma escuta local, de cada evento sonoro, na verdade o tempo foi retirado do plano de composição, ou o tempo está "fora dos seus eixos cardos" como nos diria o filósofo francês Gilles Deleuze.

É importante que tenhamos em mente que tempo e espaço não são dados a priori. Tempos e espaço são conceitos, assim como qualquer outro símbolo.(12 ) Basta olharmos para a dualidade corriqueira entre canção popular ou a música ritual e música de concerto para notarmos a ação de conceitos diferentes de tempo. Enquanto o foco das primeiras está centrado em seus no material elementar é a melodia ou o ritmo é simplesmente reiterados, na música de concerto ocidental a atenção recai sobre o desenvolvimento deste material. É o percurso que interessa; a atenção está voltada para a transformação e para o modo de transformação que nos permite passar de um material a outro e não para o material temático ou rítmico em seu estado bruto. Trata-se de dois tempos distintos. Nos primeiros dois casos (da canção popular e da música ritual) falamos de um tempo no qual o presente é contínuo, cada presente contrai outros presentes. Já no outro caso falamos de um tempo em que o presente projeta-se sobre dois extremos, sobre o passado e sobre o futuro. Temos assim um tempo circular e um tempo direcional. Se no primeiro temos apenas uma sucessão de presentes, é no segundo que encontramos o passado que foi presente ó espaço da rememoração ó e o futuro que será presente ó espaço da predicabilidade. Vistos estes dois tempos não seria possível um terceiro tempo? Messiaen nos falaria da eternidade como terceiro tempo, o "fim do tempo" que reflete a idéia de "tempo fora dos eixos".(13 )

Mas em que consiste este "tempo fora dos eixos". Aqui retorno à fórmula do pintor. Diria então que, no sentido inverso de P.Klee que introduziu o tempo na pintura, como apresenta em seu texto "La Pensée creatrice", aqui estaríamos tirando o tempo de seus eixos, desfazendo sua linearidade, trabalhando o som como manchas de tempo e quebrando suas direções buscando gerar teias complexa que enfatizassem escutas locais. Não se trata de eliminar a causalidade e ou a linearidade, mas de deixá-las transparecer apenas localmente. Se o tempo causal e linear da música tradicional sobrevive, vista a facilidade que diversos aplicativos de audio permitem em transformar gradualmente um som em outro, não vem ao caso esquecermos dele, mas incluí-lo. Neste caso cito o modo operacional de Francis Bacon que após elaborar figurações bem claras as deformava com golpes de pincel, ou com um pano seco, ou ainda a fórmula de Miró que lançava quotidianamente manchas sobre tela brancas que ficavam expostas em seu atelier até que um dia elas fossem notadas como possíveis bases para a realização de um quadro. Deste modo, ao invés de um tempo cíclico ou linear -ou reto- falaríamos de um tempo que se dobra, que se amarrota e rasga como um tecido, aproximando pontos antes distantes e distanciando pontos que eram próximos. E isto não é difícil de operarmos sem ambientes bastante simples como os sequenciadores de audio, ou até mesmo em programas de tratamento e análise espectral. Este sendo um modo de pensar a música eletroacústica como o espaço próprio para darmos real atenção ao som, sem que ele sucumba aos princípio lógicos que supostamente determinaram suas transformações, não esquecendo que um som é mais complexo do que a representação que fazemos dele, seja aquela dos sonogramas, seja aquela bastante simplória das estruturas musicais que didaticamente descrevem transformações sonoras. Dar atenção ao som seria o mesmo que dar atenção às cores, às tintas, não à seus aspectos rotineiros, pois o olhar e a escuta são também construções.




notas

(1) Cf. Schaeffer, Pierre - La Musique Concrete. Paris: PUF. 1973. pp.10-11; 25; 33 volta

(2) Mesmo após diversas iniciativas que trouxeram a linguagem dos compositores de música eletrônica para a análise musical o referencial para o estudo da harmonia permanece o mesmo. Deixando de lado propostas como as análises dos Quartetos de Beethoven realizada por André Boucourechliev que associa a escrita Beethoveniana à síntese sonora (Beethoven. Paris: Solfege. pp. 35-39) ou mesmo os estudos mais recentes ligados às experiências da música espectral, cf. diversos artigos em Jean-Claude Barrière (org.). Le Timbre, Métaphore pour la composition. Paris: Ircam/C.Bougois, 1991. Sobretudo o artigo "Pour Sortir de l'Avant-Garde" de Marc-Andre Dalbavie.volta

(3) Este fluxo de troca é apresentado nas idéia de enação (enactive) desenvolvido em neurobiologia e ciências cognitivas em Maturana, Humberto e Varela, Francisco. The tree of knowledge. Boston/Londres: Shambhala. 1992.volta

(4) Lembro aqui do espaço de interação que existe ao trabalharmos com dois aplicativos que pensam o som, ou mesmo a música, de modos distintos, senão contraditórios.volta

(5) Este termo é utilizado por Reginald Smith Brindle para designar um momento da música contemporânea que tomou Ligeti como modelo (cf. Brindle, Reginald Smith. The New Music. The Avant-Garde since 1945. Oxford: Oxford Univ.Press. 1975)volta

(6) cf. . Dahlhaus, Carl. "La crise de l'éxperimentation" in: Contrechamps, nº 3. Lausanne: L'Age D'Homme. 1983.volta

(7) Molino, Jean. "Du plaisir au jugement: les problemes de l'évaluation" in: Revue d'Analyse Musicale, nº 19. Paris: SFAM, 1990.volta

(8) cf. Kant, E. Crítica da razão Pura "Lógica Transcendental" livro I, § 10; Bréhier, Émile. Historia de la filosofia. Buenos Aires: Sudamericana S/A. 1956.volta

(9) A respeito da dualidade lógica/coerência, e da opção das vanguardas dos anos 50/70 pela primeira, Marc-André Dalbavie apresenta uma leitura bastante detalhada em "Pour sortir de l'Avant-Garde" (op.cit.). volta

(10) cf. Wörner Karl. Stockhausen, life and work. Londres: Faber & Faber. 1973. p. 139.volta

(11) Ferneyhough, Brian. "Tactility of time", in: Perspectives of New Music, vol 31, nº1, Seattle: Washington Univ.Press. 1993.volta

(12) Sobre a idéia de espaço e tempo como dados não apriorísticos ver: Varela, Francisco et all. The Embodied Mind. Cambridge: MIT Press. 1991.volta

(13) cf. Deleuze, Gilles. "Boulez, Proust e le Temps", in: Eclats/Boulez. Paris: Centre Pompidou. 1986; Messiaen, Olivier. Traité de rythme, de couleur et d'ornithologie. Paris: Leduc. 1949-92.volta