Apontamentos sobre a escuta musical


Silvio Ferraz, 1999




    Quando falamos de música sempre atrelamos tal idéia à presença do som. De um modo geral a música se dá na forma de sons. A formulação parece tão precisa que nem nos questionamos mais sobre isso. E, a partir daí nos empenhamos em pesquisas musicais e sonoras, uns mapeando os significados dos sons, outros se maravilhando sobre o modo como tais significados se dão - visto que não aprendemos a música como aprendemos nossa linguagem verbal - associando sons específicos à significados específicos.
 Parando um pouco para pensar não é difícil ver o amontoado de lugar comum presente no paragrafo que acabamos de expor, e dizer que caminhamos sobre tautologias as mais diversas: a música é feita de sons, que sons?, os sons musicais, e o que são sons musicais? são sons que estão presentes na música...então a música é feita de sons presentes na música, e a roda da tautologia gira sem fim enevoando qualquer pensamento a respeito da música que não coloque em questão a prórpia noção de música.

    Mas, porque evitarmos tais tautologias? Porque não seguirmos exatamente o caminho já trilhado e marcado do lugar comum e propor a seguinte pergunta: o que quero dizer com a palavra som? O que é o som?

    Imagine uma perturbação, uma perturbação que compartilho com outras pessoas usando da linguagem que me é disponível, linguagem que consensualmente compartilho com outros membros de minha comunidade, mesmo sabendo que aquilo que compartilho com uma ou outra palavra é específico de uma estrutura e história de acoplamento, entre indivíduos e meios, do tipo ìescutaî. Vez ou outra tento compartilhar perturbações que permitem configurações distintas em minha estrutura de escuta. Tento compartilhar porém dentro dos limites da linguagem consensual, mesmo que por vezes me valha de combinações linguísticas inusitadas, mas que não deixavam de estar previstas  no quadro de possibilidades da lingua tendo em vista a mobilidade prórpia de seu uso.

    Chamo assim de som, um tipo de perturbação. Não necessariamente algo que me venha pelos canais auditivos, pois digo também que estou ouvindo quando siplesmente simulo através de minha imaginação, e sei também que posso dizer que ouço um som quando simplesmente sinto uma perturbação do tipo vibratória, ou ainda quando sonho com um som. Em nenhum desses casos há uma relação de semelhança entre o que digo e o que acontece, nem sequer uma relação de analogia ou de identidade. Ao dizer que ìouço um somî estou apenas me valendo de um artifício consensual para compartilhar alguns tipos de perturbação, e que mesmo este quadro de perturbações pode ser ampliado, e que ele não se dá independente das estruturas e histórias de escuta de cada indivíduo.

    Assim, o que ouço se dá e é dado na imagem que é construída dessa perturbação; se dá na e pela linguagem verbal que utilizo cotidianamente, do mesmo modo que a linguagem que articula a apresentação dessa perturbação se dá na e pela perturbação, ou melhor por aquilo que a perturbação é capaz de alterar no acoplamento estrutural entre a camada perceptiva e o meio que a circunda - compreendendo por meio a linguagem do ser que se pôs no lugar de observador, sua capacidade fisiológica de resposta, o meio em que a perturbação é dada, a estrutura e história deste que se pôs como observador e a estrutura do meio que propaga a perturbação.

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    O segundo passo desse questionamento é então nos perguntarmos quando isso tudo se torna uma escuta musical. Qual o ponto em que cadeias e mais cadeias sígnicas são disparadas a ponto de poder dizer que ouço uma música, que aquela experiência é chamada de ìmusicalî. Ou ainda saber até que ponto que o que chamo por ìsomî está presente e é determinante no que chamo por ìmúsicaî.

    A música é um dos espaços de escuta possíveis. E é importante lembrar que nesse caso, a escuta musical não fala apenas daquilo que foi disparado pelo som, mas daquilo que foi disparado pela idéia de música. É da idéia de música que passo a falar. A idéia de música, comumente associada à idéia de som não necessariamente precisa desse som para se realizar. Posso imaginar uma música, posso me lembrar de uma música, posso sonhar com uma música. E aqui alguém pode me parar e dizer: ìmas calma, você está se referindo a um som imaginado, a um som rememorado ou mesmo sonhadoî. Não, não estou me referindo a um som imaginado, porque o objeto da música não é o som, mas a própria música (basta tentarmos agora lembrar e imaginar o ìsom de um tromboneî, o ìsom da voz de Tom Jobimî, o ìsom de um pianoî. O que tenho então ao falar de uma escuta musical é um território específico de agenciamento que não se dá apenas na forma de blocos de som e silêncio, mas na forma de blocos de movimento e duração, e uma série de intensidades (ora nomináveis, ora não)  cujo objeto não é o som mas a qualidade de sensação musical. Nos afastando do aspecto sonoro da música, há musicalidade na fala, na escrita, na imagem ( ìa sonoridade da luz passando por um vitral de uma catedral medievalî), num algorítmo específico (ìos sons proporcionais de um cântico reiterado de criançaî), num significado específico carregado pela letra de uma canção.

    O objeto da música não é o som, mas uma cadêia sígnica que tem, entre outros, o som por motor. A escuta musical não é assim um terreno a priori que se delimite para solucionar questões sonoras, mas um território que se define no próprio ato da escuta musical, escuta essa que não necessariamente necessitou obrigatoriamente da presença do som, a ponto de podermos afirmar, e porque não, que no limite da escuta o surdo pode ouvir.

    Não se discute aqui o que é a priori; a escuta, a música, o som, os afetos, os significados. Não falo então de um algo que veio antes e sim de um processo de configuração em que a noção de musicalidade fez-se ao mesmo tempo em que fez-se a escuta e em que o sujeito distinguiu-se como observador. Algo que poderia ser sintetisado na frase de Wittgenstein: ìa imagem de representação é a imagem que é descrita quando alguém descreve sua representaçãoî.

    E é sobre essa música que falamos ao afirmarmos que ela não comunica nada a não ser que sua existência como espaço de possíveis escutas seja aniquilado e imposto a um só tipo de escuta. E isso não significa estar me fechando a tipos de escuta como a escuta simbólica da renascença, ou a escuta também simbólica do romantismo. Elas são espaços de escuta possíveis, porém possíveis no plano sígnico do símbolo (para recorrermos à terminologia de Charle Peirce): um som, uma sequência de sons que representa algo que não é necessariamente o som, ou a sensação do sonoro. O sistema menor sendo mais apropriado para dizer as tensões e o maior para dizer a alegria, mas não a leveza que depende de modos como o dórico ou o eoleo. Mas mesmo assim, será que isso funciona? Será que a sensação de uma escuta substitui uma dôr. E aqui vale lembrar a pergunta de Busoni em seu ìEsboço para uma nova estética da músicaî, como representar o ciúme musicalmente?

    A música em si não comunica, ela é um espaço de comunicações possíveis se assim o receptor a quiser, senão ela não comunica nada. Mas ela é sempre um espaço de escutas possíveis, mesmo que alguém não a queira ouvir.

    Oras, toda a linha de pensamento decorrida até aqui se fecha sobre uma idéia, a de que o espaço de escuta é um espaço aberto, que o espaço de conversa se define no ato da conversa. Que a música e a conversa são territórios complexos delineados no ato da escuta musical e no ato da conversa e que não é a ferramenta e o material utlizado que determinam a música ou a conversa, mas eles são codeterminados. Não penso assim em uma linguagem definida a priori, mas numa linguagem agenciada coletivamente, agenciada entre os sujeitos (um espaço intersubjetivo), se é que podemos pensar em sujeito esse ser isolado como um receptáculo de psiques. Valendo por fim lembrar que potencializar a comunicabilidade da música significa antes potencializar uma cadeia de significantes e significados que serão a princípio compartilhados pela linguagem verbal, uma interação musical que seja experienciada como tal por demais sujeitos a ponto de compartilharem também seus significados.