Silvio Ferraz, 1999
Comumente, quando pensamos no uso da tecnologia aplicada à música, temos por referência a música computacional - composições geradas por, ou com auxílio parcial, do computador - ou a música eletroacústica - que tem na produção do som o seu referencial. Ou ainda aquelas geradas ou não por computador que se valem de sons sintéticos (prégravados ou não). Neste sentido, este artigo apresenta uma outra forma de pensar a relação música-suporte tecnológico, voltando o foco nem para o produto (os resultados dos cálculos ou do som sintetizado), nem para a produção (o auxílio do computador), mas para o pensamento composicional que permitem os ambientes de composição ao computador.
Em composições recentes realizadas como parte da pesquisa ìambiente de composição e performance com suporte tecnológicoî, foi levado em conta esse jogo entre as possibilidades do auxílio do computador, não como uma máquina de calcular, nem como um modo de transformação e geração de audio, mas sobretudo como um modo de se pensar a música. Dessa forma os procedimentos utilizados na composição eletroacústica e computacional foram incorporados de modo a dirigir o modo mesmo de pensar a composição. Vale no entanto distinguir o que se propôs das propostas de tecnomorfismo tal qual vezes associadas a compositores como Gerard Grisey, Jonathan Harvey, Tristan Murail, que se valem de diversos procedimentos advindos da música eletrônica ao compor suas peças acústicas. Como é o caso difundido do uso de simulação de freqüências ou amplitudes moduladas, ou de modelos de filtragens espectrais, como gerador de acordes na escrita instrumental (1)
O que se propõe aqui é o resultado de um estudo de diversos procedimentos da música com suporte tecnológico e sua absorção enquanto forma de pensar a música, o que também encontramos nos compositores citados acima, mas que ecoa melhor na obra de compositores como Gyorgy Ligeti ou Iannis Xenakis.
As composições ìcortazar, ou quarto com caixa vaziaî e ìluna, mujer y toroî que serão analisadas nesse painel inserem-se nessa proposição. Nelas o auxílio do computador não só está presente na transformação de audio em tempo real (em ìcortazarî) ou como recurso tecnomórfico, como também foram empregados alguns dos procedimentos utilizados numa peça anterior para tape solo intitulada ìel reloj del vientoî, uusando assim os modos de operar em ambientes de programação como MAX e Patchwork, como modos de operar a na escritura musical.
Com a presença cada vez maior das novas tecnologias na produção musical contemporânea algumas questões ? presentes desde a década de 50 ? se fazem mais claras. Dentre elas podemos destacar a que põe em jogo a idéia de matéria sonoro e material sonoro. Esta questão é relevante visto que atualmente, com os recursos dos computadores e dos aplicativos de gravação, análise e tratamento do som, qualquer pessoa que esteja familiarizada com a interface gráfica de um aplicativo e de um gravador de audio pode transformar sons, encadear eventos sonoros, gravar, inverter uma onda, e mesmo sintetizar seus próprio sons. O que se observa é a rapidez com que a matéria sonora devém material composicional. No entanto observou-se também o quanto esta transformação já vinha prefigurada no software utilizado como suporte para a composição. Não raro as possibilidades do software em transformar, justapor ou sobretor arquivos de audio acabam por determinar o próprio caminho composicional. Ficando o compositor, desta maneira, preso a um pensamento composicional já préestabelecido. A rapidez com que se inverte um com, com que se realiza um simples síntese cruzada acaba determinando sonoridades, que à primeira escuta são fascinantes, mas que por fim resultam em padrões identificáveis com o software X ou Y.(2)
Deste modo um simples dado sonoro, ainda matéria bruta, se torna como que num passo de mágica em material composicional, cabendo ao compositor apenas xecar se ele se amolda à seu esquema formal prédeterminado ou não: critério de uso ou descarte de material. O compositor opera então a escolha, ele usa ou não o som ou a seqüência musical apresentada, perdendo quase que por completo o contrôle sobre o material trabalhado.
É interessante notar que essa passagem da matéria sonora a material composicional, embora pareça rápida, ela já vem permeada por processos previstos no próprio software. Ou seja, a passagem não é tão rápida assim, tal qual quando nos defrontamos com composições realizadas com base em processos composicionais já tradicionais (a tonalidade, as improvisações modais ou os modelos seriais): a aparente intuição e rapidez com que a matéria sonora se torna material composic ional não se dá senão por ingenuidade pois os processos todos de transformação já vêm previstos e largamente desenvolvidos no próprio campo de composição.(3)
Tendo em vista tal enfoque, as composições apresentadas como parte dos resultados dessa pesquisa (ainda em andamento) tiveram também como questão fundamental a distinção entre ìsopa de sonsî ou a ìsopa de eventosî (para a música computacional) e a composição ou escritura musical. Ou seja, estudar como uma mera reunião de elementos se transforma num fato musical (no sentido definido por Jean Molino).(4) No entanto, nessas peças não se busca evitar essa rapidez dada pelo computador, ou por processos de cálculo. Ao invés de buscar um caminho distante da montagem imediata permitida pelo computador, e que muitas vezes implica na já comentada rapidez e fragilidade na passagem da matéria sonora em material composicional, lançou-se mão desse modo de compôr, digamos informal, ou intuitivo, em contraposição a plano locais de desmontagem desses resultados.(5) Ou seja, lançados alguns ìblocos de sonoridadesî que chamaram atenção num primeiro momento, como o faria um compositor iniciante apaixonado por resultados sonoros que lhe aparentam ìinéditosî, esses foram tomados como pontos de partida para desenvolver a peça segundo dois vetores opostos na linha do tempo: desenvolver para traz e para a frente, até que se conectem com os desenvolvimentos dos blocos seguinte e antecedente. Nesse sentido foram utilizados procedimentos como a interpolação e a síntese cruzada entre os materiais dos pontos de conexão, o que implicava numa etapa de análise da matéria sonora dos pontos de conexão como sobretudo de sua presença enquanto material composicional. Vale lembrar que muitas vezes o som referência, já transformado em material gerador, foi retirado ou mesmo tratado e modificado.
Este mesmo processo foi transposto posteriormente para a composição instrumental de ìCortazar...î, pondo em jogo a possibilidade de descartar ou mesmo transformar elementos fundamentais para o desenvolvimento de uma ou outra passagem, sem contar o fato de ter sido utilizado largamente a idéia de desenvolvimento de um elementos no sentido contrário à flecha do tempo.
Esse embate entre o uso de recursos do auxílio
do computador e da composição intuitiva (jogo entre o automático
e o informal, tal qual vale-se Ferneyhough em seus Carceri díinvenzione)
também está presente em ìCortazar...î, porém aplicando
um pensamento da escrita instrumental acústica na música
eletroacústica. A criação de um patch de transformação
de audio em ambiente MAX/MSP,(6) permitiu
que tais processos de transformação do som seguissem um esquema
harmônico, o mesmo que guia a estrutura harmônica da escritura
da peça. Uma série de modulações do som original
por AM foi realizada tomando-se por base a criação de um
módulo de síntese aditiva, que obedece a um sistema de expansão
e contração de acordes e a um determinado grau de inarmonicidade
determinado a princípio para a escrita da parte de piano. O resultado
harmônico dessas sínteses é então multiplicado
ao envelope dinâmico da amplitude geral do sinal de entrada (os ataques
do piano), resultando em uma sonoridade que vem a dar um grau de inarmonicidade
e curvatura espectral estranha ao som do piano.
fig 1. Patch Caixa Vazia, mostrando o módulo de cálculo
gerador de duas séries possíveis de parciais
(que são multiplicados às freqüências de base
extraídas das notas tocadas pelo piano) e módulo de multiplicação
entre síntese
aditiva gerada com base nos parciais e sinal de entrada.
A figura mostra também o console de trabalho de Caixa Vazia,
com tela para visualização da evolução das
séries de parciais.
Sendo esse trabalho parte de um projeto de pesquisa na área de composição musical, os resultados, ou conclusões desse trabalho encontram-se na forma de composições musicais, destacando-se a série de peças:ìritorneloî (flauta e percussão - estréia ìfestival música novaí98î), ìel reloj del vientoî (tape solo - estréia ìbienal de música eletroacústica de São Pauloî), ìcortazar ou quarto com caixa vaziaî (piano e live-electronic - estréia prevista para o ìfestival música novaí99î); ìEsboço para Eî (coro SATB, dois pianos e live-eletronic - estréia pelo coral paulistano no evento ìballet do iv centenárioî); ìluna, mujer y toroî (violoncelo solo - estréia no ìI rencontre díensemble de violloncellosî); ìdesertoî (conjunto instrumental - estréia ìfestival música novaí98î) e ìde pedra em silêncioî (para grande orquestra - composição em andamento).
As peças refletem todas as preocupações de relação relatada acima entre música e tecnologia, buscando modos de trabalho que busquem confrontar-se com o limite composicional - e não tecnológico, ou computacional - de ambientes de composição como MAX/MSP e Patchwork, ou mesmo com ìambientesde montagem e sequenciação de audioî do tipo ProTools, trazendo para a escritura instrumental modos de escolha, criação desenvolvimento e transformação do material composicional facilmente sugeridos para a escritura eletroacústica com auxílio do computador, ou vice-versa.
Como relato do projeto vale também citar
o fato de que uma série de artigos foi escrito sobre esse tema,
destacando-se também as atividades concentradas em torno do grupo
de compositores e pesquisadores do Centro de Linguagem Musical do Programa
de estudos pós-graduados em Comunicação e Semiótica
da PUCSP (CLM-PUCSP).
Assayag, Gerard. (1993). ìCAO: vers une partition potentielleî.
les cahiers de líircam, no.3. Paris: ircam.
Cohen-Levinas, Daniel (1992). ìentretien avec Tristan Murailî. les
chaiers de líircam, no.1. Paris: ircam.
Dobrian, Christopher. (1998). MSP Documentation. SanFrancisco: cycling.
Ferneyhough, Brian (1978)l ìles carceri díinventione, dialectique de
líautomatisme et de líinformelî. Entretemps, no.3. Paris: J.C.Lattés.
Ferraz, Silvio (1997). ìSemiótica e música: uma aproximaçãoî.
opus, no.4 Rio: anppom/cnpq.
Ferraz, Silvio (1998). música e repetição. SP:
educ/fapesp.
Ferraz, Silvio (1998). ìcomposição e ambiente de composiçãoî.
revista pesquisa e música. Rio: CBM.
Miguashca, Mesia (1991). ìspectre-harmonie- mélodie- timbreî.
Barriere, J.B. le timbre métaphore pour la composition. Paris: Christian
Bourgois/ircam.
Malt, Mikhail (1996). Patchwork introduction. Paris: ircam.
Molino, Jean (1975). ìfait musicale et sémiologie de la musiqueî.
musique en jeux, no. 17. Paris: Seuil
Wilson, Niklas (1989). ìver une écologie des sons: Partiels
de Gérard Griseyî. entretemps, no.8. Paris: J.C.Lattés.
(1) cf. Wilson, Niklas (1989). ìver une écologie des sons: Partiels de Gérard Griseyî. entretemps, no.8. Paris: J.C.Lattés.(volta)
(2) recentemente participando do comitê de seleção de obras para os encontros do Nucleo de Computação e Música da Sociedade Brasileira de Computação (1998 e 1999) foi possível observar como determinados usos dos softwares de tratamento e síntese determinam sonoridades e modos de encadeamento e sobreposição sonóra que acabam se caracterizando em clichês composicionais datados e facilmente localizáveis.(volta)
(3) sobre essa questão da transformação de matéria sonora em material composicional ver também: Assayag, Gerard. (1993). ìCAO: vers une partition potentielleî. les cahiers de líircam, no.3. Paris: ircam; e sobretudo Cohen-Levinas, Daniel (1992). ìentretien avec Tristan Murailî. les cahiers de líircam, no.1. Paris: ircam (volta)
(4) Molino, Jean (1975). ìfait musicale et sémiologie de la musiqueî, musique en jeux, no. 17. Paris: Seuil.(volta)
(5) alguns resultados dessa proposição e uma explicação mais detalhada estão apresentados no útlimo capítulo do livro Música e repetição recentemente publicado pela educ (ver bibliografia).(volta)
(6) MAX/MSP é um ambiente de programação por objetos que opera tanto com protocolo midi como com dados dsp, permitindo assim diversos recursos de transformação de audio em tempo real ou não, através da construção de filtros, de diveros modos de síntese cruzada, que podem tanto serem construídos para operação automátic a como ainda aceitar qualquer interface gestual que esteja conectada ao compuator. (cf. Dobrian, Christopher. (1998). MSP Documentation. SanFrancisco: cycling) (volta)